terça-feira, 20 de julho de 2021

Detalhes (trecho)

 O velho porteiro do palácio chega em casa, trêmulo. Com o faz sempre que  tem baile no palácio, sua mulher o espera com café da manhã reforçado. Mas desta  vez ele nem olha para a xícara fumegante, o bolo, a manteiga, as geléias. Vai direto à aguardente. Atira-se na sua poltrona perto do fogão e toma um longo gole da bebida, pelo gargalo.

-- Helmuth, o que foi?

-- Espera, Helga. Deixe eu me controlar primeiro.

Toma outro gole de aguardente.

-- Conta, homem! O que houve com você? Aconteceu alguma coisa no baile?

-- Co – começou tudo bem. As pessoas chegando, todo mundo de gala, todos com convite, tudo direitinho. Sempre tem, claro, o filhinho de papai sem convite que quer me levar na conversa, mas já estou acostumado. Comigo não tem conversa. De repente, chega a maior carruagem que eu já vi.enorme. e toda de ouro. Puxada por três parelhas de cavalos brancos. Cavalões! Elefantes! De dentro da carruagem salta uma dona. Sozinha. Uma beleza. Eu me preparo para barrar a entrada dela porque mulher desacompanhada não entra em baile do palácio. Mas essa dona é tão bonita, tão sei lá, radiante, que eu não digo nada e deixo ela entrar.

-- Bom, Helmuth. Até aí...

-- Espera. O baile continua. Tudo normal. Às vezes rola um bêbado pela escadaria, mas nada de mais. E então bate a meia-noite. Há um rebuliço na porta do palácio. Olho para trás e vejo uma mulher maltrapilha que desce pela escadaria, correndo. Ela perde um sapato. E o príncipe atrás dela.

-- O príncipe?!

-- Ele mesmo. E gritando para mim segurar a esfarrapada. “Segura! Segura!” Me preparo para segurá-la quando ouço uma espécie de “vum” acompanhado de um clarão. Me viro e...

-- E o que, meu Deus?

O porteiro esvazia a garrafa com um último gole.

-- Você não vai acreditar.

-- Conta!

-- A tal carruagem. A de ouro. Tinha-se transformado numa abóbora.

-- Numa o quê?!

-- Eu disse que você não ia acreditar.

--  Uma abóbora?

-- E os cavalos em ratos.

-- Helmuth...

-- Não tem mais aguardente?

-- Acho que você já bebeu demais por hoje.

-- Juro que não bebi nada!

-- Esse trabalho no palácio está acabando com você, Helmuth. Pede para ser transferido para o almoxarifado.


VERÍSSIMO, Luis Fernando. Outras do analista de Bagé. Porto Alegre: L&PM, 1982, p. 83-85.