Onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da terra, e com tal requinte, que — afirmava Gabriel Soares — a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, feita no dia. Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o donatário do Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, segundo nos referem testemunhos do tempo. Aos índios tomaram ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e águas do litoral, o modo de cultivar a terra ateando primeiramente fogo aos matos. A casa peninsular, severa e sombria, voltada para dentro, ficou menos circunspecta sob o novo clima, perdeu um pouco de sua aspereza, ganhando a varanda externa: um acesso para o mundo de fora. Com essa nova disposição, importada por sua vez da Ásia oriental e que substituía / com vantagem, em nosso meio, o tradicional pátio mourisco, formaram o padrão primitivo e ainda hoje válido para as habitações européias nos trópicos.
Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 47)
[...] a ausência completa, ou praticamente completa, entre eles, de qualquer orgulho de raça. Ao menos do orgulho obstinado e inimigo de compromissos, que caracteriza os povos do Norte. Essa modalidade de seu caráter, que os aproxima das outras nações de estirpe latina e, mais do que delas, dos muçulmanos da África, explica-se muito pelo fato de serem os portugueses, em parte, e já ao tempo do descobrimento do Brasil, um povo de mestiços. [...]
Neste caso o Brasil não foi teatro de nenhuma grande novidade. A mistura com gente de cor tinha começado amplamente na própria metrópole. Já antes de 1500, graças ao trabalho de pretos trazidos das possessões ultramarinas, fora possível, no reino, estender a porção do solo cultivado, desbravar matos, dessangrar pântanos e transformar charnecas em lavouras, com o que se abriu passo à fundação de povoados novos. Os benefícios imediatos que de seu trabalho decorriam fizeram com que aumentasse incessantemente a procura desses instrumentos de progresso material, em uma nação onde se menoscabavam cada vez mais os ofícios servis.
Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 53)
A já mencionada carta de Clenardo a Latônio revela-nos, pela mesma época, como pululavam os escravos em Portugal. Todo o serviço era feito por negros e mouros cativos, que não se distinguiam de bestas de carga, senão na figura. “Estou em crer” , nota ele, “que em Lisboa os escravos e escravas são mais que os portugueses.” Dificilmente se encontraria habitação onde não houvesse pelo menos uma negra. A gente mais rica tinha escravos de ambos os sexos, e não faltava quem tirasse bons lucros da venda dos filhos de escravos. “ Chega-me a parecer” , acrescenta o humanista, “ que os criam como quem cria as pombas para ir ao mercado. Longe de se ofenderem com as ribaldias das escravas, estimam até que tal suceda, porque o fruto segue a condição do ventre: nem ali o padre vizinho, nem eu sei lá que cativo africano o podem reclamar. [...]
Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 54)
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