sábado, 23 de julho de 2016

O português aventureiro, averso ao trabalho, e a escravidão. Por Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil" (1936).

Essa pouca disposição para o trabalho, ao menos para o trabalho sem compensação próxima, essa indolência, como diz o deão Inge, não sendo evidentemente um estímulo às ações aventurosas, não deixa de constituir, com notável freqüência, o aspecto negativo do ânimo que gera as grandes empresas. Como explicar, sem isso, que os povos ibéricos mostrassem tanta aptidão para a caça aos bens materiais em outros continentes? “ Um português” , comentava certo viajante em fins do século XVIII, “ pode fretar um navio para o Brasil com menos dificuldade do que lhe é preciso para ir a cavalo de Lisboa ao Porto.” E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura? Ainda hoje convivemos diariamente com a prole numerosa daquele militar do tempo de Eschwege, que não se envergonhava de solicitar colocação na música do palácio, do amanuense que não receava pedir um cargo de governador, do simples aplicador de ventosas que aspirava às funções de cirurgião-mor do reino... Não raro nossa capacidade de ação esgota-se nessa procura incessante, sem que a neutralize uma violência vinda de fora, uma reação mais poderosa; é um esforço que se desencaminha antes mesmo de encontrar resistência, que se aniquila no auge da força e que se compromete sem motivo patente. E, no entanto, o gosto da aventura, responsável por todas essas fraquezas, teve influência decisiva (não a única decisiva, é preciso, porém, dizer-se) em nossa vida nacional.

Da edição Companhia das Letras (1995: 46)

A verdade é que a grande lavoura, conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza perdulária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamente, ela seria irrealizável. O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço — efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros —, mas era preciso que fosse muito simplificado, restringindo-se ao estrito necessário às diferentes operações. Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses no Brasil com a lavoura açucareira. Não o foi, em primeiro lugar, porque a tanto não conduzia o gênio aventureiro que os trouxe à América; em seguida, por causa da escassez da população do reino, que permitisse emigração em larga escala de trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a atividade agrícola não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza. No mesmo ano de 1535, em que Duarte Coelho desembarcava em sua donataria pernambucana, o humanista Clenardo, escrevendo de Lisboa a seu amigo Latônio, dava notícia das miserá veis condições em que jaziam no país as lides do campo: “ Se em algum lugar a agricultura foi tida em desprezo” , dizia, “é incontestavelmente em Portugal. E antes de mais nada, ficai sabendo que o que faz o nervo principal de uma nação é aqui de uma debilidade extrema; para mais, se há algum povo dado à preguiça sem ser o português, então não sei onde ele exista. Falo sobretudo de nós outros que habitamos além do Tejo e que respiramos de mais perto o ar da África” . E algum tempo mais tarde, respondendo às críticas dirigidas por Sebastião Münster aos habitantes da península hispânica, Damião de Góis admitia que o labor agrícola era menos atraente para seus compatriotas do que as aventuras marítimas e as glórias da guerra e da conquista.

Da edição Companhia das Letras (1995: 49-50)

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