Escrever este livro foi o desafio maior que me propus. Ainda
é. Há mais de trinta anos eu o escrevo e reescrevo, incansável. O pior é que me
frustro quando não o faço, ocupando-me de outras empresas. Nunca pus tanto de
mim, jamais me esforcei tanto como nesse empenho, sempre postergado, de
concluí-lo. Hoje o retomo pela terceira vez, isto se só conto aquela primeira
vez em que o escrevi e completei, e a segunda em que o reescrevi todo, inteiro,
esquecendo as inumeráveis retomadas episódicas e inconseqüentes.
Ultimamente essa angústia se aguçou porque me vi na
iminência de morrer sem concluí-lo. Fugi do hospital, aqui para Maricá, para
viver e também para escrevê-lo. Se você, hoje, o tem em mãos para ler, em
letras de fôrma, é porque afinal venci, fazendo-o existir. Tomara. Acabo de
ler, meio por cima, a última versão. Aquela que escrevi no Peru e que até foi
traduzida em castelhano, mas que eu vetei. Era um bom livro, acho agora. Bem
podia ter sido publicado tal qual era. Ou ainda é, uma vez que aí está tal e
qual: desafiante. Mas eu não quis largá-lo. Pedia mais de mim, me prometia
revê-lo, refazê-lo, até que alcançasse aquela forma que devia ter. Qual?
Creio que nenhum livro se completa. O autor sempre pode
continuar, por um tempo indefinido, como eu continuei com esse, ao alcance da
mão, sem retomá-lo. O que ocorre é que a gente se cansa do livro, apenas isto,
e nesse momento o dá por concluído. Não tenho muita certeza, mas suspeito que
comigo é assim. Por que só agora o retomo, depois de tantos, tantíssimos anos,
em que me ocupei das tarefas mais variadas, fugindo dele? Não sei! Não foi para
descansar, certamente. Foi para me dar a outras tarefas. Entre elas, a de me
fazer literato e publicar quatro romances, retomando uma linha de interesses
que só me havia tentado aos vinte anos.
Nessa longa travessia, também politiquei muito, com êxito e
sem êxito, aqui e no exílio, e me dei a fazimentos trabalhosos, diversos.
Inclusive vivi, quase morri. Nesses anos todos, o livro, este, ficou por aí,
engavetado, amarelando, esperando até hoje. Agora, estou aqui na praia de
Maricá, para onde trouxe as pastas com o papelório de suas várias versões.
A primeira tentativa de escrevê-lo, que nem chegou a
compaginar-se, se deu em meados da década de 50, quando eu dirigia um amplo
programa de pesquisas socio-antropológicas no órgão de pesquisas do Ministério
da Educação, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Eu o
concebia, então, como síntese daqueles estudos, com todas as ambições de ser um
retrato de corpo inteiro do Brasil, em sua feição rural e urbana, e nas versões
arcaica e moderna, naquela instância que, a meu ver, era de vésperas de uma
revolução social transformadora.
Eu o abandonei, então - lá se vão trinta anos -, para
ocupar-me de planejar e implantar a Universidade de Brasília. Esta tarefa me
levou a outras, tais como as de ministro da Educação, de chefe do Gabinete
Civil do presidente João Goulart, com a missão de concatenar o Movimento
Nacional pelas Reformas de Base.
Tudo isso resultou, sabe-se, no meu primeiro exílio, no
Uruguai. Lá, a primeira versão deste livro, umas quatrocentas páginas densas,
tomou forma, depois de dois anos de trabalho intenso. Não era já a síntese que
me propusera. Era, isto sim, a versão resultante de minhas vivências nos
trágicos acontecimentos do Brasil de que havia participado como protagonista.
Esse era o nervo que pulsava debaixo do texto, a busca de uma resposta
histórica, científica, na organização que nos fazíamos nós, os derrotados pelo
golpe militar. Por que, mais uma vez, a classe dominante nos vencia?
Na verdade, para escrevê-lo, mal compulsei os livros
resultantes daquelas pesquisas, que chegaram a ser publicados. Ele foi feito da
leitura de quanto texto me caiu nas mãos sobre o Brasil e a América Latina.
Muitíssimos, lembro-me bem, graças à magnífica Biblioteca Municipal de
Montevidéu.
Uma vez completado o livro, a primeira leitura crítica que
consegui fazer dele todo me assustou: não dizia nada, ou pouco dizia que não
tivesse sido dito antes. O pior é que não respondia às questões que propunha,
resumíveis na frase que, desde então, passei a repetir: por que o Brasil ainda
não deu certo?
Meu sentimento era de que nos faltava uma teoria geral, cuja
luz nos tornasse explicáveis em seus próprios termos, fundada em nossa
experiência histórica. As teorizações oriundas de outros contextos eram todas
elas eurocêntricas demais e, por isso mesmo, impotentes para nos fazer
inteligíveis. Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presente não era
necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futuro comum.
Atrás de respostas a essas questões, mergulhei, nos anos
seguintes, em estudo e assombros. O que devia ser uma introdução teórica, no
meu plano de revisão do texto, foi virando livros. A necessidade de uma teoria
do Brasil, que nos situasse na história humana, me levou à ousadia de propor
toda uma teoria da história. As alternativas que se ofereciam eram impotentes.
Serviriam, talvez, como uma versão teórica do desempenho
europeu, mas não explicavam a história dos povos orientais, nem o mundo árabe e
muito menos a nós, latino-americanos. A melhor delas, representada pela nova versão
compilada por Engels, nas Origens, e por Marx, nas Formações, opondo-se uma à
outra, deixavam o tema em aberto.
O processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida,
quero crer, porque foi traduzida para as línguas de nosso circuito ocidental, editada
e reeditada muitas vezes e é objeto de debates internacionais nos Estados
Unidos e na Alemanha. A ousadia de escrever um livro tão ambicioso me custou
algum despeito dos enfermos de sentimentos de inferioridade, que não admitem a
um intelectual brasileiro o direito de entrar nesses debates, tratando de
matérias tão complexas.
Sofreu restrições, também, dos comunistas, porque não era um
livro marxista, e dos acadêmicos da direita, porque era um livro marxista. Isso
não fez dano porque ele acabou sendo mais editado e mais lido do que qualquer
outro livro recente sobre o mesmo tema.
Mas o Processo não bastava. A explicação que oferece para 10
mil anos de história é ampla demais. Suas respostas, necessariamente genéricas,
apenas dão tênues delineamentos do nosso desempenho histórico. Era o que podia
dar como alternativa aos textos clássicos, com que geralmente se trabalhava
esse tema. Um esquema conceitual mais verossímil e mais explicativo do que os
disponíveis, através da proposição de novas revoluções tecnológicas como
motores da história, de novos processos civilizatórios e de novas formações
socioculturais. Vista sob essa luz, a nossa realidade se retrata em seus traços
mais gerais, resultando num discurso explicativo útil para fins teóricos e comparativos,
mas insuficiente para dar conta da causalidade da nossa história.
Saí, então, em busca de explicações mais terra-a-terra, em
mais anos de trabalho. O tema que me propunha agora era reconstituir o processo
de formação dos povos americanos, num esforço para explicar as causas do seu
desenvolvimento desigual. Salto, assim, da escala de 10 mil anos de história
geral para os quinhentos anos da história americana com um novo livro: As
Américas e a civilização, em que proponho uma tipologia dos povos americanos,
na forma de uma ampla explanação explicativa.
Esse meu livro anda aí, desde então, sendo traduzido,
reeditado e discutido, mais por historiadores e filósofos do que por
antropólogos. Esses meus colegas têm um irresistível pendor barbarológico e um
apego a toda conduta desviante e bizarra. Dedicam seu parco talento a quanto
tema bizarro lhes caia em mãos, negando-se sempre, aparvalhados, a usar suas
forças para entender a nós mesmos, fazendo antropologias da civilização.
Ocorre, porém, uma vez mais, que, completada a tarefa, vejo
os limites daquilo que alcancei em relação ao que buscava. Meu livro ajuda, é
certo, a nos fazer inteligíveis, mas é claramente insuficiente para nossas
ambições. Mergulho outra vez buscando, numa escala nova, sincrônica, as teorias
de que necessitávamos para nos compreender. Eram três as mais urgentemente
requeridas para tomar o lugar dos esquemas menos eurocêntricos do que toscos
com que se contava.
Uma teoria de base empírica das classes sociais, tais como
elas se apresentam no nosso mundo brasileiro e latino-americano. Visivelmente,
o esquema marxista aceito, sem demasiados reparos, no mundo europeu e no
anglo-saxão de ultramar, feito de povos transplantados, empalidece frente à
nossa realidade ibero-latina. Aqui, não havendo burguesias progressistas
disputando com aristocracias feudais, nem proletariados ungidos por
irresistíveis propensões revolucionárias, mas havendo lutas de classe,
existiriam blocos antagonistas embuçados a identificar e caracterizar.
Nos faltava, por igual, uma tipologia das formas de
exercício do poder e de militância política, seja conservadora, seja
reordenadora ou insurgente.
Toda politicologia copiosíssima de que se dispõe é
feita de análises irrelevantes ou de especulações filosofantes que nos deixam
mais perplexos do que explicados. Efetivamente, falar de liberais,
conservadores, radicais, ou de democracia e liberalismo e até revolução social
e política pode ter sentido de definição concreta em outros contextos; no nosso
não significa nada, tal a ambigüidade com que essas expressões se aplicam aos
agentes mais diferentes e às orientações mais desconexas.
Faltava ainda uma teoria da cultura, capaz de dar conta da
nossa realidade, em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não-saber popular
alcança, contrastantemente, atitudes críticas, mobilizando consciências para
movimentos profundos de reordenação social. Como estabelecer a forma e o papel
da nossa cultura erudita, feita de transplante, regida pelo modismo europeu,
frente à criatividade popular, que mescla as tradições mais díspares para
compreender essa nossa nova versão do mundo e de nós mesmos? Para dar conta
dessa necessidade é que escrevi O Dilema
da América Latina. Ali, proponho novos esquemas das classes sociais, dos
desempenhos políticos, situando-os debaixo da pressão hegemônica norteamericana
em que existimos, sem nos ser, para sermos o que lhes convém a eles.
Num exercício puramente didático, resumi os corpos teóricos
desenvolvidos nesses três livros, para compor Os brasileiros: Teoria do Brasil. Ele só traz de novo a teoria da
cultura a que aludi. Não a situei no Dilema, para não ter que tratar tema tão
copioso dentro da dimensão latino-americana.
Os índios e a
civilização compõe, com os quatro livros citados, meus Estudos de
Antropologia da Civilização, ainda que resultasse de uma pesquisa realizada
anteriormente. O certo, porém, é que seu corpo teórico é o mesmo, fundado no
conceito de transfiguração étnica. Vale dizer, o processo através do qual os
povos surgem, se transformam ou morrem.
Ocupado nessas escrituras "preliminares", que
resultaram em cinco volumes de quase 2 mil páginas, descuidei desse livro que
agora retomo. Efetivamente, todos eles são fruto da busca de fundamentos
teóricos que, tornando o Brasil explicável, me permitissem escrever o livro que
tenho em mãos.
Foi o que tentei várias vezes no Peru, conforme dizia,
chegando a redigi-lo inteiro, já com base nos meus estudos teóricos. Não me
satisfazendo a forma que alcancei anos atrás, o pus de lado, cuidando que, com
uns meses a mais, o retomaria.
Não foi assim.
Desencadeou-se sobre mim o vendaval da vida. Um câncer me comia um pulmão
inteiro e tive de retirá-lo. Para tanto, retornei ao Brasil, reativando as
candentes luzes políticas que dormiam em mim nos anos de exílio. Tudo isso e,
mais que tudo, uma compulsiva pulsão romanesca que me deu, irresistível, assim
que me soube mortal e que, desde então, me escraviza, afastando-me da tarefa
que me propunha.
Agora, uma nova pulsão, mortal, reaviva a necessidade de
publicar este livro que, além de um texto antropológico explicativo, é, e quer
ser, um gesto meu na nova luta por um Brasil decente. Portanto, não se iluda
comigo, leitor. Além de antropólogo, sou homem de fé e de partido. Faço
política e faço ciência movido por razões éticas e por um fundo patriotismo.
Não procure, aqui, análises isentas. Este é um livro que quer ser participante,
que aspira a influir sobre as pessoas, que aspira a ajudar o Brasil a
encontrar-se a si mesmo.
Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do
invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos,
uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a
regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais
distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar
a um povo novo (Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária.
Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada
culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por
uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais
delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente
nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. Povo novo, ainda,
porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma
singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de
escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela
inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão
sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros.
Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado
externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não
existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da
função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste
da população que recruta no país ou importa. A sociedade e a cultura
brasileiras são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição
civilizatória européia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos
índios americanos e dos negros africanos.
O Brasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado de
características próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa, cujas
potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só aqui se realizariam
plenamente. A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras
poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de
componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário, uma vez
que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos
brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em
antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades
étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação.
As únicas exceções são algumas microetnias tribais que
sobreviveram como ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que, vivendo'
para além das fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São
tão pequenas, porém, que qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à
macroetnia em que estão contidas.
O que tenham os brasileiros de singular em relação aos
portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes
indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram no
Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos
objetivos de produção que as engajou e reuniu.
Essa unidade étnica básica não significa, porém, nenhuma
uniformidade, mesmo porque atuaram sobre ela três forças diversificadoras. A
ecológica, fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições de meio
ambiente obrigaram a adaptações regionais. A econômica, criando formas
diferenciadas de produção, que conduziram a especializações funcionais e aos
seus correspondentes gêneros de vida. E, por último, a imigração, que
introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmente europeus,
árabes e japoneses. Mas já o encontrando formado e capaz de absorvê-los e
abrasileirá-los, apenas estrangeirou alguns brasileiros ao gerar diferenciações
nas áreas ou nos estratos sociais onde os imigrantes mais se concentraram.
Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos
rústicos de ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como
sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do
Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros,
teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles muito mais marcados pelo
que têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas a adaptações
regionais ou funcionais, ou de miscigenação e aculturação que emprestam
fisionomia própria a uma ou outra parcela da população.
A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de
ser, contribuiu para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural,
sem, contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de
vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em suas
regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamente
como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos culturais.
Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais
e em suas funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de
velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se sentem
e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Vale dizer, uma
entidade nacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, só
diferenciada por sotaques regionais, menos remarcados que os dialetos de
Portugal. Participando de um corpo de tradições comuns mais significativo para
todos que cada uma das variantes subculturais que diferenciaram os habitantes
de uma região, os membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes
formativas.
Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia
nacional, um povo-nação, ssentado num território próprio e enquadrado dentro de
um mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na
Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades
multiétnicas regidas por Estados unitários e, por isso mesmo, dilaceradas por
conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em uma única etnia nacional,
constituindo assim um só povo incorporado em uma nação unificada, num Estado
uni-étnico. A única exceção são as múltiplas microetnias tribais, tão
imponderáveis que sua existência não afeta o destino nacional.
Aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional - que
são, sem dúvida, a grande resultante do processo de formação do povo brasileiro
- não devem cegar-nos, entretanto, para disparidades, contradições e
antagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos da maior
importância. A unidade nacional, viabilizada pela integração econômica
sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, de fato, depois da
independência, como um objetivo expresso, alcançado através de lutas cruentas e
da sabedoria política de muitas gerações. Esse é, sem dúvida, o único mérito
indiscutível das velhas classes dirigentes brasileiras. Comparando o bloco
unitário resultante da América portuguesa com o mosaico de quadros nacionais
diversos a que deu lugar a América hispânica, pode se avaliar a extraordinária
importância desse feito.
Essa unidade resultou de um processo continuado e violento
de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de
toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente
separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente
edificar uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação
potencializa e reforça, nessas condições, a repressão social e classista,
castigando como separatistas movimentos que eram meramente republicanos ou
antioligárquicos.
Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se
uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio
processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde
a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima
camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais
intransponíveis que as diferenças raciais.
O povo-nação não surge no Brasil da evolução de formas
anteriores de sociabilidade, em que grupos humanos se estruturam em classes
opostas, mas se conjugam para atender às suas necessidades de sobrevivência e
progresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalho escrava,
recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de
processos tão violentos de ordenação e repressão que constituíram, de fato, um
continuado genocídio e um etnocídio implacável.
Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre
as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas,
agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e
da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Em
conseqüência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois lusobrasileiras
e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do
alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavor pânico é a
brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição
autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem
vigente. A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e
remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde
habitualmente a esses antagonismos.
Nesse plano, as relações de classes chegam
a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana
entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e
a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural. A
façanha que representou o processo de fusão racial e cultural é negada, desse
modo, no nível aparentemente mais fluido das relações sociais, opondo à unidade
de um denominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160 milhões
de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por uma estratificação classista
de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa
conceber.
O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão
proclamada, como falsa, "democracia racial", raramente percebem os
profundos abismos que aqui separam os estratos sociais.
O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos
tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os
ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente
se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria
repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que
perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social
como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual
tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos,
mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis.
Essa alternidade só se potencializou dinamicamente nas lutas
seculares dos índios e dos negros contra a escravidão. Depois, somente nas
raras instâncias em que o povo-massa de uma região se organiza na luta por um
projeto próprio e alternativo de estruturação social, como ocorreu com os
Cabanos, em Canudos, no Contestado e entre os Mucker.
Nessas condições de distanciamento social, a amargura
provocada pela exacerbação do preconceito classista e pela consciência
emergente da injustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas que
conflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica a
preocupação obsessiva que tiveram as classes dominantes pela manutenção da
ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que isso pode suceder,
caso se abram as válvulas de contenção. Daí suas "revoluções
preventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal menor que
qualquer remendo na ordem vigente.
É de assinalar que essa preocupação se assentava, primeiro,
no medo da rebeldia dos escravos. Dada a coloração escura das camadas mais
pobres, esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais que
ameaçam eclodir com violência assustadora. Efetivamente, poderá assumir a forma
de convulsão social terrível, porque, com uma explosão emocional, acabaria
provavelmente vencida e esmagada por forças repressoras, que restaurariam,
sobre os escombros, a velha ordem desigualitária.
O grande desafio que o Brasil enfrenta é alcançar a
necessária lucidez para concatenar essas energias e orientá-las politicamente,
com clara consciência dos riscos de retrocessos e das possibilidades de
liberação que elas ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço
terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na
história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e
opressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados e negros
foram chacinados aos milhões, sempre vencidos e integrados nos plantéis de
escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas de milhares, foi
também sangrado em contra-revoluções sem conseguir jamais, senão
episodicamente, conquistar o comando de seu destino para reorientar o curso da
história.
Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou
aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma
fundamental da construção da história. O que faltou, sempre, foi espaço para
movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta
ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como
necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de
ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu
pelas grandes maiorias.
Não é impensável que a reordenação social se faça sem
convulsão social, por via de um reformismo democrático. Mas ela é muitíssimo
improvável neste país em que uns poucos milhares de grandes proprietários podem
açambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões de trabalhadores
a se urbanizarem para viver a vida famélica das favelas, por força da
manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um político nacionalista ou
populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes
dominantes apelam para a repressão e a força.
Este livro é um esforço para contribuir ao atendimento desse
reclamo de lucidez. Isso é o que tentei fazer a seguir. Primeiro, pela análise
do processo de gestação étnica que deu nascimento aos núcleos originais que,
multiplicados, vieram a formar o povo brasileiro. Depois, pelo estudo das
linhas de diversificação que plasmaram os nossos modos regionais de ser. E,
finalmente, por via da crítica do sistema institucional, notadamente a
propriedade fundiária e o regime de trabalho - no âmbito do qual o povo
brasileiro surgiu e cresceu, constrangido e deformado.
Darcy Ribeiro.
O Povo Brasileiro - A formação e o sentido do
Brasil. 2ª ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Prefácio - pg. 11-17.
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