sábado, 5 de agosto de 2017

A meditação sobre o Tietê - Mário de Andrade




Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
— Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...

É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da Ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oleosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O óleo das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,
Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam
Agora, arranha-céus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oleosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado

É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.

“Lira Paulistana” (1945)
(trecho do longo poema concluído em fevereiro de 1945)

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