Já fiz duas vezes a viagem de Sabará. Para quem vive em Belo
Horizonte (a menos interessante das cidades mineiras; menos interessante do que
qualquer estaçãozinha de estrada de ferro, perdida no mato, onde o trem não
para) esta viagem é uma revelação. Revelação de coisas que os livros não
trazem, porque o próprio dos livros é desviar a curiosidade das coisas
realmente dignas de serem reparadas; uma sensação de queda no abismo, talvez o
abismo dos séculos, quem sabe?, em todo caso um abismo e a sensação brusca de
queda. A mudança inesperada de planos produz isso. A nostalgia das origens,
inconsciente mas ativa, faz o resto. A 24 quilômetros, da incaracterística e
fácil capital de Minas, a velha cidade do Borba nos espreita como uma cilada
colonial.
O passado dói fisicamente quando nos aproximamos dele com os
olhos cheios de presente. As linhas, cores e volumes de outrora, tão
brutalmente distintos dos de hoje, ofendem, machucam a nossa sensibilidade.
Sair de uma avenida perfeitamente arborizada, areada, iluminada, policiada e de
repente plaft! cair de chofre na ladeira do Kakende... (Estes dois Ks não são
já duas pedras pontudas?) Enfim, depois de algum tempo o espanto, o susto, a
dor (falo das sensibilidades alertas, é claro) se confundem e misturam num sentimento
vasto e bom, numa euforia demorada, envolvente, cândida; beatitude do corpo em
paz com a alma, da alma que se espreguiça sorrindo dentro do corpo; e o
espírito da gente se dissolve do passado.
Por duas vezes Sabará me deu esta sensação de dor feliz acabando
em dissolução. Duas vezes operou em mim o sortilégio das cidades mortas de
Minas, que são as cidades mais vivas de Minas, em que pese a Juiz de Fora, Belo
Horizonte, Uberaba, Ponte Nova, Cataguases. E mergulhando na sua paz profunda
de ladeiras, igrejas, cemitérios, eu meditava que coisa terrível como
encantamento deve ser Ouro Preto. E são João del-Rei. E Mariana. E Diamantina.
Pois se ali que era o passado, ao alcance da mão, o passado acessível,
superficial, "de aluvião" com duas ou três figuras de primeiro planos
somente, e uma chusma vaga de bandeirantes, emboabas e liberais revolucionários
agitando-se sobre o pano de fundo; se ali o prodígio era tão agudo, como seria,
meu Deus!, em Diamantina, em São João del-Rei, cidades humanas e ilustres como
impérios?
Sabará vale assim como uma introdução ao passado mineiro.
Aos que quiserem dar um mergulho nesse rio de superfície tranquila e de camadas
inferiores agitadíssimas, aconselho que visitem e estudem primeiro Sabará. É a
menos "violenta" de nossas cidades tradicionais. Aquela em que a
perspectiva histórica, embora mais acentuada que a perspectiva artística, cede
talvez mais facilmente lugar a esta última. Em Vila Rica e nas outras cidades
"extintas" de Minas é impossível esquecer elemento histórico, que se
insinua traiçoeiramente em toda conversa, leitura, miranda, até mesmo nos
momentos de gozo estético mais desabalado. Aqui houve tocaias e combates; aqui
Tiradentes fez isso, Marília fez aquilo; aqui dançou (como Josephine Baker)
Chica da Silva; aqui Felisberto Caldeira Brant virou-se para jesuíta e disse;
aqui outrora retumbante hinos. Os hinos retumbam ainda, e muitas vezes nos
proíbem de ouvir os segredos que as imagens do Aleijadinho queriam contar; a
arte é curta e a história é longa; há painéis do Ataíde mas há também os
cavalos que arrastaram Felipe dos Santos; quantos cavalos? Um, dois, quatro?
Problema cuja discussão nos impede de admirar como desejávamos a graça
retorcida deste ornato; ou o colorido franco e ingênuo desta figura que deve ser
a Arca da Aliança; este púlpito que dois hércules suportam; o chafariz; a
lanterna que não alumia mais; a platibanda.
Em Sabará, não. Aqui, o tenente-general Manuel de Borba
Gato, com todo romanesco de sua existência que está pedindo urgentemente um biógrafo
esperto, não consegue afastar o nosso olhar das maravilhosas combinações de
planos em que desenvolver a cidade. Contemplando os sobrados decrépitos, que
pareciam estar esperando a visita do desenhista Manoel Bandeira para depois
cair aos pedaços, eu pensava menos nos guerreiros e nos exploradores barbudos
que os habitaram, do que na composição sóbria das fachadas, no gosto do severo
que presidiu à construção dessas moradias, verdadeiras máquinas de habitar¹
como duzentos anos depois havia de querer um aquiteto maluco; máquinas
primitivas, em que escadarias imensas faziam o papel de rodas supérfluas, porém
máquinas e satisfazendo perfeitamente o fim a que se destinavam.
E d. Rodrigo de Castel-Branco, "que era, à parte os
pequenos defeitos, um homem fino e amável"; Matias Cardoso de Almeira,
"sertanista abalizado"; Artur de Sá e Meneses, "quem aqui
instalou o princípio de autoridade"; d. Maria Pimenta, que com seu marido
Jacinto de Sá Benevides, "troncos de ilustre geração", povoou a
infinita solidão de Sabarabuçu; Manuel Nunes Viana, "o primeiro ditador
que se erigiu na América", espécie de Mussolini maneiroso saído dos
armazéns de gêneros; frei Francisco de Meneses, "frade incomparável",
batalhador, sanhudo, flor de uma geração de sacerdotes "libertinos e
dissolutos, simoníacos e apóstatas" nenhuma destas sombras ilustres, de
que os livros nos relatam as boas e as malas-artes, os heroísmos e os crimes, é
bastante imprudente para nos assaltar numa esquina da cidade modorrenta como
tenho a impressão que fariam os espectros consagrados dos outros burgos
tradicionais, e:
-Tenha a bondade de parar um pouquinho e examinar estes
papéis. Não me acha de fato um vulto digno de figurar na história mineira?
Há, é certo, os lugares históricos e os pseudo-históricos,
que a memória vaidosa do povo indica ao viajante boquiaberto (todo viajante é
boquiaberto por definição). Mas não são eles em Sabará que nos despertam a
melhor emoção; a melhor emoção, a mais cheia de pudor e mais profunda, é para
certas formas de beleza que o homem e o tempo criaram e vão destruindo de
parceria; certas igrejas que envelheceram caladas e orgulhosas no seu
incomparável silêncio; certos becos: certas ruas tristes e tortas por onde
ninguém passa, nem a saudade deste chafariz, com uma cruz e uma data, como um
túmulo; a sucessão dos Passos; muros em ruína mesmo, sem literatura,
inteiramente acabados; tudo o que no passado não é nem epopeia nem romance nem
anedota; o que é arte.
Fui, como todo mundo, visitar a igreja do Carmo. Em frente
do frontispício famoso, em que o Aleijadinho pôs to-dos os recursos de uma
técnica extremamente apurada, mais fruto de intuição que de estudo (era um
monstro divinatório, não há dúvida), está o cemitério; estão as catacumbas com
os nomes dos mortos inscritos no muro alto. E entre o templo e as catacumbas
(uma nesga de terra), está o silêncio de um largo de igreja antiga, o
inesgotável silêncio e as mil coisas misteriosas que nele se agitam.
Meu amor me ensinou a ser simples
como um largo de igreja
onde não há nem um sino
nem um lápis
nem uma sensualidade.
Poema lindo mas falso, este de Oswald de Andrade... Não
creio que haja coisa mais complicada e perturbadora do que um largo de igreja
dos bons, dos legítimos. Como esse do Carmo, em Sabará, em que na exiguidade de
alguns metros de terra cabem todas as melancolias, todas as deliquescências,
tudo o que não chegou a realizar-se e também uma grande calma e resignação
cristãs. Na sombra tênue os pensamentos amadurecem como frutas, sem que a gente
sinta necessidade de exprimi-los; o contagioso silêncio; saber que tudo está
vivo e calado ao redor de nós; ou antes, não saber coisa ne-nhuma, estender-se
no chão e olhar a cruz entre duas torres, o relógio inútil, sem corda, não
marcando nenhuma hora, e a outra igreja, no fundo, sem nome, que importa o
nome.
Mas há outro poeta que diz:
Em todas as velhas cidades de Minas
há sempre um velho do tempo das bandeiras
que conta histórias e mostra as igrejas...
Nem sempre; às vezes é um menino que nos conduz e
naturalmente ignora tudo, inclusive o nome de batismo do Aleijadinho; o velho,
que se presume mais informado, tem memória fraca, pernas trôpegas; resta o
sacristão, indivíduo de idade neutra, triste e vago, que desejaria mostrar-nos
os livros da irmandade, mas as chaves da sacristia nunca estão em seu poder.
Conheci os três tipos na cidade; o mais interessante, vê-se
logo, é o menino, que embora não saiba positivamente de nada, ou por isso
mesmo, é bastante inteligente para tirar partido da curiosidade que o
forasteiro mostre pelos templos. Um desses guias mirins me transmitiu a ideia
que fazia do Aleijadinho e não era propriamente falsa, posto que exagera-da;
Aleijadinho, confiou-me ele degustando metodicamente um pé de moleque, era um
homem sem braços nem pernas, tronco só, que fez todas essas igrejas que o
senhor está ven-do aí e depois foi para Ouro Preto fazer as de lá. Percebi que
a "definição" fora arranjada mais para distração do que para
informação do ouvinte, mas, como não se distanciasse muito da realidade,
gratifiquei devidamente o autor.
Aliás, o garoto exprimia a média da opinião corrente so-bre
o Aleijadinho, personagem mítico, de contornos indefi-nidos, autor de uma
porção de obras que nunca fez e possui-dor de uma série de característicos que
jamais o distinguiram. O silêncio dos arquivos, de onde nada ou quase nada saiu
até agora para iluminar a personalidade do artista, aumenta e jus-tifica essa
confusão. ²
Sabe-se apenas que em Congonhas do Campo existem re-cibos
firmados pelo cinzelador dos profetas. Em Sabará ouvi falar de documentos
semelhantes, e mesmo um certo Zido-rinho - aqui fica o seu nome como indicação
para futuros e mais afortunados pesquisadores - prometeu fornecê-los com rapidez,
mediante certa quantia que o jornalista representante de O Jornal não teve
dúvida em desembolsar previamente, na doce expectativa de ver brotar do fundo
do passado revela-ções sensacionais sobre o mais notável arquiteto e escultor
brasileiro. Zidorinho, porém, até hoje se conserva em discre-to e pundonoroso
silêncio, o que me induz a suspeitar, sem malícia, da improficuidade de suas
buscas nos velhos armá-rios de jacarandá.
Antônio Francisco Lisboa continua assim à mercê da
in-ventiva popular, que lhe atribui feitos improváveis e obras de duvidosa
autenticidade. As nossas cidades tradicionais se dis-putam a glória de possuir
maior número de recordações do formidável talhador, e nesse empenho comum
entram em boa dose o sentimento bairrista, o cálculo e a boa-fé. Embora seja
por muitos títulos um artista difícil, como se diz, o Aleijadinho tem uma
clientela cada dia mais numerosa. Seus trabalhos são coisas que podemos mostrar
sem susto, como a colcha de da-masco, a toalha de renda, o castiçal de prata. Envaidecem.
E de-pois dão lucro; necessidade de fomentar o turismo, indústria incipiente e
de grandes possibilidades; o dinheiro que circula e tilinta nos bolsos;
atividades que se intensificam; seria até o caso de posturas municipais.
Finalmente, sendo agradável e lu-crativo, é também honesto, e quem sabe se até
verdadeiro; aqui a boa-fé introduz-se no raciocínio e faz com que o espertalhão
fique dupe [ingenuamente confiante] da própria esperteza, como o hipnotizador
que, para causar maior impressão ao público, começasse por hipnotizar-se a si
próprio.
Não digo tais coisas com o pensamento detido em Sabará. Noto
apenas um estado de espírito mais ou menos genera-lizado e que afinal, bem
pesadas as coisas, serve mais é para demonstrar a grandeza do Aleijadinho.
Lugar por onde esse homenzinho pardo e de maus bofes andou é
lugar encantado. Em tudo se nota seu rastro; ia dizer sua garra, se não me
objetassem que não podia ter garras porque não tinha dedos. Pilhéria aliás
tola, porque Lisboa não nasceu aleijado, e Rodrigo Bretas, seu único e verídico
biógrafo, nos afirma que só em 1777 começaram a roê-lo as muitas mazelas que
acumulou numa vida de farras franciscanas. Antes disso, porém, já havia
produzido muito, e é claro como água que suas obras mais perfeitas são
anteriores à zampari-na", ou à complicação "humor gálico com o
escorbútico". Escorbuto que também me parece suficiente para explicar em
grande parte a disparidade de "maneiras" e de técnicas ob-servada nos
trabalhos do mestre. Artista irregular, a doença repelente tornou-o mais
irregular ainda, rasgando uma dife-rença maior entre as figuras que saíram de
suas mãos outrora íntegras e hoje mutiladas.
De qualquer maneira foi desmesurado, e sozinho bastaria para
colorir uma época em que se cuidou mais de viver que de embelezar a vida.
Dominando o puzzle econômico e acomo-datício do barroco jesuítico, aparece-nos
como um criador simples, forte e desabusado.
Era tão marcante a sua personalidade que em Sabará, a cidade
menos fecundada pelo seu gênio, resta coisa sua, e os ornatos das igrejas a que
deu expressão exalam a nostalgia desse demiurgo da plástica.
Desprendemo-nos a custo da fascinação que exercem o
frontispício, os púlpitos e os atlantes da igreja do Carmo, para nos perdermos
entre os painéis da igreja Grande ou assuntar-mos as chinesices simplesmente
curiosas, que, como as peni-nhas da anedota, estão ali só para atrapalhar.
Nossa Senhora do Ó fica mais adiante, e não é difícil encontrar também em suas
decorações um pouco de chinesice. Que é que não se encontra numa igreja
daqueles tempos, minha Nossa Senhora do Ó?
A impressionante velhice dessa capelinha, talvez a primei-ra
casa de Deus que se construiu no país do rio das Velhas. A Matriz data de 1771,
e o Carmo é sabidamente posterior; em Nossa Senhora do Ó, como a autenticar-lhe
a idade provecta, há um ex-voto comovente pela incorreção ortográfica e pela
convicção do milagre que aí se registra. Tive a pachorra de copiá-lo
igualzinho:
Mercê q fes na. sa. do o aocappam. maior lvcas ribeiro almda.
regente desta va. real den sa. da conceiçam oqval vindo defazer afest a ada.
sa. deq hera ivis oacometeram temerariamte. qvatro soldados dos dragois edepois
todos os mais da compa. comd ezeio deomatarem mas nem comasespadas nem com
vários tiros q lhederam foi posivel q consegvisem o imtento por q amai de deos
dev forças ao seo devoto pa. q detudo sedefendese se m reseber omenor perigo
nem emsi nem em osescravos q oacompanh avão e emçinal deagradecimento mandov
fazer esta memoria q soss edeo em o s29 de dezenbro de 1720.
Era assim a Vila Real de Sabará, nos bons tempos de 1700 e
pouco, em que todo mundo ia beber água no chafariz do Kakende; bebia e ficava,
porque a água do Kakende, afirma o povo com absoluta certeza, prende como
visgo. Tempos heroicos e barulhentos, mas também tempos de milagre, em que um
capitão-mor acometido por toda uma companhia de dragões escapava incólume por
uma das quatro ruas que "davam aos povos a franqueza de sua
comunicação"; ou antes quatro estradas: uma ao norte, uma a oeste e duas
ao sul. Estas últimas cortavam a Sabarabuçu na ponte do João Velho e na ponte
pequena; a do oeste dava para o rio das Velhas, e quem aí passasse veria da
ponte grande as últimas canoas paulistas sulcando melancólicas o Uaimi-i de que
o ouro ia desertando.
A mineração "a lume d'água" cedia lugar à
mineração em terra firme, muito mais penosa mas já praticada com êxito pelo
português teimoso e absorvente. Pelos quatro caminhos circula uma turba
colorida de frades, milicianos, mascates e negros, muitos negros, 5 mil negros,
que sofrem e se multipli-cam através da comarca do rio das Velhas.
Os dias passam-se em rudes trabalhos para uns, caçadas para
outros, as noites em orgias para todos, sendo o elemento religioso o mais
debochado, como em todas as Minas Gerais. A vila turbulenta exige extremos de
policiamento: dois regi-mentos de cavalaria levantam poeira do chão,
intimidando os desordeiros e ladrões; vinte companhias de ordenança,
cons-tituídas de homens brancos, onze de homens pardos e sete de homens pretos
completam o ambiente marcial; não esquecer que Sabará é excelente ponto
estratégico, e ninguém melhor do que Manuel Nunes Viana mostrou saber disso; os
governa-dores que se sucedem, transmitindo-se as dificuldades, man-têm o
aparato bélico que lhes é de tanto proveito na pacificação dos ânimos
eternamente revoltados: "esta gente tão desobediente", escreve ao rei
o conde de Assumar; "estas gentes que por caminho nenhum se podem
governar"; "uma canalha tão indômita", insiste o santo
inquisidor de Vila Rica, propondo a Sua Majestade, entre outras coisas amáveis,
que a todo negro fugido se corte a perna direita e se adapte uma de pau.
... foi-se lenta a penúltima canoa; a última desce agora o
rio seco, rumo de Santa Luzia ou da história mineira (nin-guém sabe, nem o
canoeiro); foram-se os portugueses, os baianos, os paulistas, os legalistas e
os rebeldes de 1842; "as pedras de Sião choram amargamente na noite...;
quem disse? Nada chora em Sabará; tudo é sério e composto, tudo é digno; uma
atitude descabelada como a do profeta Jeremias causaria escândalo aos discretos
e orgulhosos habitantes da cidade.
Aliás essa gente de passo largo (o passo dos bandeiran-tes e
dos subidores de ladeira) não vive só de recordações da idade do ouro. Vive
também de certezas da idade de ferro. Depois de nos mostrar as naves do século
XVIII, o sabarense leva-nos à Siderúrgica Belgo-Mineira (20 mil contos de
ca-pital, usina para fabricação de aço e de gusa, 10 mil pés de eucalipto, 15
mil hectares de terra cobertos de florestas, com depósitos minerais e
quedas-d'água em profusão). E esta usina é como um direto no queixo do
saudosista.
Fecho os olhos para ver a cidade-presepe; dir-se-ia
de-calcada nas estampas ingênuas do Natal, em que as casas se alastram numa
desordem aparente e um rio raso - dois rios rasos - serpenteiam muito
convencidos de sua função decorativa; as ruas tortas são obscuros caminhos de
Deus, e todas conduzem a igrejas, no alto dos morros; como em todo pre-sepe que
se preza, pululam anacronismos; um chalezinho catita, um Ford, um cinema, uma
joalheria; de novo as casas coloniais subindo a rua em procissão; grandes
massas verdes inscrevem-se arbitrariamente na perspectiva urbana e
desor-ganizam-na; jabuticabeiras. Um inglês declarou-me que em sua terra ouvira
falar da excelência das jabuticabas de Sabará; não podia compreender como é que
não se explora indus-trialmente uma tal riqueza etc.; esse homem positivo
ignora-va que em Sabará as jabuticabeiras também são decorativas: inútil tomar
um carro em Belo Horizonte e ir com a família em busca das bolinhas pretas e
lustrosas, último ouro do rio das Velhas; quem vai com a boca doce volta com a
boca seca; os proprietários formulam evasivas, recusando qualquer dinheiro, e
as bolinhas lá continuam dependuradas, como numa árvore de brinquedos.
- Mas o pé está carregado até o chão.
- O pé está carregadinho mas ainda não choveu, e jabuti-caba
sem chuva faz mal pra saúde, o senhor sabe.
Tirante isso, o povo é acolhedor e bom; talvez não aprecie
muito o povo de Belo Horizonte, mas são brigas de família; no fundo ambos se
enternecem um pelo outro. Uma ocasião perguntaram ao poeta Justino da Praia,
que nasceu e morreu em Sabará, o que é que ele preferia nas quatro partes do
mundo; resposta:
Do Curral d'El-Rei as frutas,
Das Congonhas os Danié;
De Sabará os Paula Rocha,
De Santa Luzia as muié.
O mundo é assim. Entre jaboticabas de Sabará, o poeta
Justino da Praia suspirava pelas mangas do Curral d'El-Rei, cujos poetas, por
sua vez, suspiram pelas jabuticabas de Sabará.
¹ Da mesma forma que as igrejas eram verdadeiras máquinas de
rezar, até nos detalhes burocráticos da sacristia. A pompa de algumas não
indicava preo-cupação estética e sim moral; era antes um ardil para atração dos
crentes de-sidiosos e sedução dos incrédulos; exterioridades convidativas de
máquina, pois. Isto me parece psicologicamente mais razoável do que afirmar que
os anseios de fausto da época se objetivavam só na fábrica luxuosa dos templos,
desertando as residências particulares, nuas e tristes. Uma contraprova está no
fato de que, quando lhes dava na telha, os antigos também sabiam construir
solares maravilhosos: o Jacinto Dias em Sabará, por exemplo.
(Publicado num jornal
carioca em 1929 e incluído na coletânea “Confissões de Minas”, de 1944)
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/09/21/interna_gerais,571152/cronica-viagem-de-sabara.shtml
http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/09/21/interna_gerais,571152/cronica-viagem-de-sabara.shtml
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