sexta-feira, 16 de março de 2018

Núcleos Urbanos Planejados do Século XVIII - Maria Helena Ochi Flexor (trechos)

No Brasil, a ocupação do território foi feita por pedestres, pouco a pouco, passo a passo, tanto no litoral quanto no sertão. Foram esses pedestres que formaram os primeiros núcleos urbanos. 

Às vésperas da instalação do Governo Geral, em l548, existiam em todo o território, l6 vilas e povoados. Um século depois, em l650, contavam-se 37 povoações, entre vilas e cidades. Apenas trës desses núcleos nasceram cidades: Salvador (l549), Rio de Janeiro (1565) e Filipéia de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa (1584). [...]

Visando viabilizar a politica de povoamento e urbanização, Cartas Régias e Instruções foram enviadas a todas as regiões do Brasil, para que as autoridades locais promovessem a criação de povoações e erigissem estas, e as aldeias indígenas, em vilas. […] A Carta de 26 de janeiro de 1765, do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino, Conde de Oeiras (futuro Marquês de Pombal), Sebastião Jose de Carvalho e Melo, dirigida ao Vice-Rei do Estado do Brasil, Conde da Cunha, mandava os artigos das Instruções para que se fundassem novas vilas, tanto nas aldeias dos índios, quanto em outros lugares que fossem tidos como próprios para essas fundações. [...]


Para cumprir o projeto português foram enviados representantes do governo luso. [...]

A fundação de povoações elou vilas pretendia reunir os habitantes para que os mesmos se agregassem e não morassem somente em sítios dispersos. [...] ordenavam que todos os lavradores construíssem casas nos centros urbanos para, pelo menos de tempos em tempos, reunirem-se em “sociedade civil”. […]

As autoridades pretendiam, além do mais, povoar o território para "adiantar a cultura e lavoura dos campos que ficam místico às povoações” para produzir o suficiente para o abastecimento local e um excedente para exportação. Na verdade, Portugal estava bastante preocupado com a perda dos territórios para os espanhóis, em especial nas regiões que, até a sua expulsão, estavam sob o domínio dos jesuítas. Todas as providências tomadas foram no sentido de reaver os territórios, fixar o homem e defendê-los. Não se descuidou também do litoral. D. Jose ordenava que se estabelecessem povoações civis de índios livres que, assim, deixariam de ser inimigos dos portugueses e dos espanhóis e não assaltariam os caminhos, as cidades, vilas e aldeias das duas nações. [...]

A empresa não era simples e fácil e as próprias autoridades davam conta das principais dificuldades. […] Os negros eram, então, em número reduzidíssimo, quase insignificante. Entre as dificuldades apontadas pelos Capitães-Generais e Ouvidores, encontramos: falta de gente e estágio de "civilização" dos índios, tipos de recrutados para os povoamentos, dificuldade de recrutamento de habitantes e fixação de degredados, falta de assistência espiritual e má qualidade dos religiosos, falta de mão-de-obra especializada para os serviços públicos. Ainda: falta de oficiais da câmara e mecânicos, dinheiro, instrumentos de trabalho, material construtivo de maior durabilidade; ignorância e pobreza dos povoadores, dificuldades administrativas, jurídicas e, jurisdicionais, corrupção e boatos, condições locais adversas e diversas, especialmente falta de infra-estrutura urbana e mesmo para sobrevivência. […]

Civilizar os índios significava faze-los vestirem-se, ter uma vida espiritual e temporal igual a dos brancos, bem como "ajudar os mesmos na agricultura e no comércio”. Isto vale dizer impor os valores dos brancos: vida sedentária, moral, ambição, acumulo de bens, vida unifamiliar, etc. [...]

Os métodos de recrutamento de pessoas para povoar as novas regiões eram diversos. Iam desde a conquista do índio até o indulto a criminosos que se refugiavam na Capitania. Fixar o homem - índio ou português - ao solo e conseguir novos povoadores, constituía uma das dificuldades mais serias e constantes. […] Àqueles que se dispunham povoar uma região prometia-se premiações. […]

As pessoas arregimentadas nem sempre eram voluntárias. Umas não queriam mudar-se, outras faziam muitas exigências, escondiam-se ou até choravam. A maior parte era composta por miseráveis […], criminosos de pequenos delitos "na esperança de viverem ali sossegados, devedores falidos afim de obterem huma moratória por certo numero de anos. […] As vilas recem-criadas eram formadas por índios, vadios e criminosos. Previa-se que as "pessoas revoltosas, e de mal viver" deviam ser expulsas para não perverter a boa educação e harmonia dos povoadores. Mas na maioria dos casos era justamente para essas novas povoações que se mandavam os indivíduos de má conduta. Para elas eram enviadas as prostitutas, mulheres adulteras cujos maridos não as queriam de volta, bem como todo tipo de criminosos. Não era difícil arregimentar-se povoadores "à força", principalmente entre vadios, possuidores de sítios volantes e criminosos. Estes últimos constituíam o quadro dos chamados degredados. Também eram ameaçadas de prisão, e de serem conduzidas para a cabeça da Capitania a ferros, as pessoas que num tempo determinado não construíssem suas casas arruadas.. A instalação desses povoadores não significava que as povoações programadas fossem definitivas. Se o meio natural, por exemplo, fosse inadequado, as pessoas se mudavam da mesma forma como tinham se instalado. A mudança de local para melhores condições de vida correspondia menos à busca de atividades rentáveis, para enriquecimento, que pelo próprio instinto de sobrevivência e auto-defesa. […]

Os movimentos demográficos mostram como eram precárias as relações sociais. Eram fatores de despovoamento: descoberta de ouro, recrutas, expedições de exploração e conquista, guerras, esgotamento do solo, epidemias, falta de água, luta entre brancos e índios e mesmo recenseamento (que era tomado como recruta) ou mudança obrigatória de religiosos e militares. O abandono do núcleo era considerado deserção. Os novos moradores só podiam mudar de lugar com ordem expressa das autoridades. Podiam ser presos e a suas custas remetidos para a prisão. Com a diminuição da população, algumas povoações regrediram. A adversidade do meio podia provocar mudanças. Deste modo, novas povoações apareciam, enquanto as anteriores, se não desapareceriam, permaneciam com um número diminuto de povoadores, quase sempre miseráveis. Por isso mesmo, alguns desses núcleos programados não se desenvolveram a contento e foram alvo de nova política de fixação de habitantes nos finais do século XVIII. […]

Procurou-se, por todos os meios, fazer com que os povoadores adquirissem ferramentas - em lugar de despender o que ganhavam em aguardente (41) erigissem igreja e cobrissem suas casas de telha em vez de palha […]. Alem da falta de ferramentas, não havia mão-de-obra especializada […] os próprios Ouvidores e Capitães-Generais foram os urbanistas, arquitetos e mestres de obra, e o povo, na ausência dos oficiais mecânicos especializados, os construtores. Coube a eles a organização espacial dos núcleos urbanos programados e a expansão da rede urbana. […] só tardiamente puderam contar com a presença de engenheiros militares em suas obras públicas e civis. […] Com o transcorrer do tempo, o que se fez ressaltar foi a diferença econômica e não especificamente a social. Alguns tinham conseguido seguir o determinado, fazendo suas casas de tijolos e cobertas de telhas e ombreavam-se com aquelas cujos donos não tinham tido possibilidades econômicas de cobrli-las com material mais nobre, continuando a usar a palha. […]

Nas povoações planejadas, a Igreja, ao contrário do que acontecia normalmente, aparece depois de tomadas outras iniciativas. A capela-mor era feita às custas da Fazenda Real. Cabia ao Rei mandá-la executar como padroeiro e senhor dos dizimos. O corpo da Igreja deixava-se para o povo construir. Davam, inicialmente, as condições mínimas para a fundação dessas povoações, ficando "a comodidade e aumento delas para o futuro”. A localidade era escolhida segundo determinadas circunstâncias. O nome da povoação era dado pelas próprias autoridades, por ordem de Sua Majestade. À mesma autoridade cabia a escolha do padroeiro da matriz e o fornecimento da imagem desse padroeiro. Com a fundação de novas povoações as sesmarias que se encontrassem no local perdiam a validade, prevalecendo o bem comum contra os interesses particulares. Os sesmeiros, no entanto, podiam recorrer à justiça para dar-lhe solução ou conseguir outra sesmaria. [...]

O traçado desses núcleos é caracterizado, pois, pela regularidade, ordem, simetria, retomando as características típicas do século XVI […]. A partir da praça central - contendo plourinho, Matriz e Casa de Câmara e Cadeia -, as construções particulares acresciam-se, num traçado regular […].

Vale dizer que algumas das povoações formadas espontaneamente nos séculos XVI e XVII, e mesmo algumas deixadas pelos donatários das Capitanias, foram retraçadas e reurbanizadas no século XVIII, dentro dessa mesma ordenação. O traçado regular fazia parte do projeto português […], portanto uniforme para toda a rede urbana brasileira que, então se criava. 


O traçado da rede urbana previa o tipo de povoamento aglomerado ou concentrado, ao contrário do que existia até então, disperso e disseminado. O projeto visava a aglomeração seriada de casas, sem interposição de espaços cultivados, em que as casas pegam-se umas com as outras. Os quintais ficavam no fundo, geralmente invisíveis da rua. […] As casas eram erigidas de acordo com modelos pré-estabelecidos. […] documentos determinavam o arruamento, tamanho dos quintais, o recuo da rua, altura, largura e comprimento ·das casas, número de cômodos, de vãos e sua disposição. Por esses mesmos documentos percebemos que os portugueses trataram de destruir o módulo de composição formado por casas coletivas, encontradas na maioria das aldeias jesuíticas do Brasil e Paraguai, e edificar núcleos familiares individualizados, capazes de abrigar uma única família. Basicamente, a política de urbanização ligava-se ã estrutura familiar, povoamento, loteamento e solidariedade comunitária. A criação, seguida de medição e demarcação, da nova vila tinha um cerimonial próprio com a presença de autoridades. A planta da praça, ruas e travessas e suas medidas eram registradas no livro de provimentos da correição. Na ocasião, escolhiam-se os arruadores, ajudantes da corda e picadores de mato para delimitar os espaços. […]

Para essas novas vilas eram dadas as "leis municipais, chamadas vulgarmente posturas” que estabeleciam os direitos e deveres dos Juízes e Oficiais da Câmara e do povo (63). Cada local devia ter, no mínimo, cinquenta vizinhos e serem agregados em "povoações civis" tanto para o trabalho, para não cair "na laxidão e na preguiça”, quanto para receber os benefícios espirituais. […]

Metade da população constituía-se de índios, andando “todos universalmente” vestidos, ao menos com camisas e calção. As casas já estavam “alfaiadas” como as dos brancos. […]

Mesmo as aldeias indígenas que foram formadas a partir dos meados do século, seguiam os padrões estabelecidos para as outras povoações e vilas, embora mais simples, levando-se em consideração também o sitio escolhido […].

Muitos núcleos fracassaram como fracassaram aqueles implantados sob o sistema de capitanias hereditárias. […] nos séculos XVIII e XIX é que o Brasil absorveu, numa proporção esmagadora, os fluxos emigratórios da Metrópole e ilhas adjacentes. Ao iniciar-se o século XIX o Brasil teria cerca de três milhões de habitantes, sendo um terço de escravos.

Fonte: Revista RUA - Faculdade de arquitetura / Mestrado em Arquitetura e Urbanismo - UFBA. Ano 1, nº 1, 1988, p. 89-114.

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