A própria Coroa não hesitou, ocasionalmente, em temperar os zelos de certos funcionários mais infensos a essa tendência. Assim ocorreu, por exemplo, quando a um governador de Pernambuco se expediu ordem, em 1731, para que desse posse do ofício de procurador ao bacharel nomeado, Antônio Ferreira Castro, apesar da circunstância alegada de ser o provido um mulato. Porque, diz a ordem de d. João V, “o defeito de ser pardo não obsta para este ministério e se repara muito que vós, por este acidente, excluísseis um bacharel formado provido por mim para introduzirdes e conservardes um homem que não é formado, o qual nunca o podia ser por lei, havendo bacharel formado”.
É preciso convir em que tais liberalidades não constituíam lei geral; de qualquer modo, o exclusivismo “racista”, como se diria hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos. Muito mais decisivo do que semelhante exclusivismo teria sido o labéu tradicionalmente associado aos trabalhos vis a que obriga a escravidão e que não infamava apenas quem os praticava, mas igualmente seus descendentes. A esta, mais do que a outras razões, cabe atribuir até certo ponto a singular importância que sempre assumiram, entre portugueses, as habilitações de genere.
Também não seria outra a verdadeira explicação para o fato de se considerarem aptos, muitas vezes, os gentios da terra e os mamelucos, a ofícios de que os pretos e mulatos ficavam legalmente excluídos. O reconhecimento da liberdade civil dos índios — mesmo quando se tratasse simplesmente de uma liberdade “tutelada” ou “protegida”, segundo a sutil discriminação dos juristas — tendia a distanciá-los do estigma social ligado à escravidão. É curioso notar como algumas características ordinariamente atribuídas aos nossos indígenas e que os fazem menos compatíveis com a condição servil — sua “ociosidade”, sua aversão a todo esforço disciplinado, sua “imprevidência”, sua “intemperança” , seu gosto acentuado por atividades antes predatórias do que produtivas — ajustam-se de forma bem precisa aos tradicionais padrões de vida das classes nobres. E deve ser por isso que, ao procurarem traduzir para termos nacionais a temática da Idade Média, própria do romantismo europeu, escritores do século passado, como Gonçalves Dias e Alencar, iriam reservar ao índio virtudes convencionais de antigos fidalgos e cavaleiros, ao passo que o negro devia contentar-se, no melhor dos casos, com a posição de vítima submissa ou rebelde.
Longe de condenar os casamentos mistos de indígenas e brancos, o governo português tratou, em mais de uma ocasião, de estimulá-los, e é conhecido o alvará de 1755, determinando que os cônjuges, nesses casos, “não fiquem com infâmia alguma, antes muito hábeis para os cargos dos lugares onde residirem não menos que seus filhos e descendentes, os quais até terão preferência para qualquer emprego, honra ou dignidade, sem dependência de dispensa alguma, ficando outrossim proibido, sob pena de procedimento, dar- se-lhes o nome de caboclos, ou outros semelhantes, que se possam reputar injuriosos”. Os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos \ de baixa reputação, os negro jobs, que tanto degradam o indivíduo que os exerce, como sua geração. Assim é que, em portaria de 6 de agosto de 1771, o vice-rei do Brasil mandou dar baixa do posto de capitão-mor a um índio, porque “ se mostrara de tão baixos sentimentos que casou com uma preta, manchando o seu sangue com esta aliança, e tornando-se assim indigno de exercer o referido posto”.
Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 55-56)
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