quarta-feira, 10 de julho de 2019

Artes e Ofícios no período colonial

No Brasil, a organização dos ofícios segundo moldes trazidos do reino teve seus efeitos perturbados pelas condições dominantes: preponderância absorvente do trabalho escravo, indústria caseira, capaz de garantir relativa independência aos ricos, entravando, por outro lado, o comércio, e, finalmente, escassez de artífices livres na maior parte das vilas e cidades.

São freqüentes, em velhos documentos municipais, as queixas contra mecânicos que, ou transgridem impunemente regimentos de seu ofício, ou se esquivam aos exames prescritos, contando para isso com a proteção de juizes benévolos. Uma simples licença com fiador era, em casos tais, o bastante para o exercício de qualquer profissão, e desse modo se abriam malhas numerosas na disciplina só aparentemente rígida das posturas. Os que conseguiam acumular algum cabedal, esses tratavam logo de abandonar seus ofícios para poderem desfrutar das regalias ordinariamente negadas a mecânicos. Assim sucede, por exemplo, a certo Manuel Alves, de São Paulo, que deixa em 1639 sua profissão de seleiro para subir à posição de “homem nobre” e servir os cargos da República.

Por vezes, nem tal cautela se torna imprescindível: muitos eram os casos de pessoas consideradas nobres que se dedicavam, como meio de vida, a serviços mecânicos, sem perderem as prerrogativas pertinentes à sua classe. Contudo não seria essa a lei geral: é plausível admitir-que constituísse antes um abuso reconhecido como tal, embora largamente tolerado, pois do contrário não se compreende que um Martim Francisco, já em começo do século passado, se admirasse de que muitos moradores de Itu, sendo “todos pelo menos nobres” , se dedicassem a ofícios mecânicos, “pois que pelas leis do reino derrogam a nobreza”.

Embora a lei não tivesse cogitado em estabelecer qualquer hierarquia entre as diferentes espécies de trabalho manual, não se pode negar que existiam discriminações consagradas pelos costumes, e que uma intolerância maior prevaleceu constantemente com relação aos ofícios de mais baixa reputação social. Quando, em 1720, Bernardo Pereira de Berredo, governador do estado do Maranhão, mandou assentar praça de soldado a certo Manuel Gaspar, eleito almotacé, alegando que “ bem longe de ter nobreza, havia sido criado de servir” , conformou-se logo o senado com a decisão e, ainda por cima, anulou a eleição de outro indivíduo, que “vendia sardinhas e berimbaus”.

Nos ofícios urbanos reinavam o mesmo amor ao ganho fácil e a infixidez que tanto caracterizam, no Brasil, os trabalhos rurais. Espelhava bem essas condições o fato, notado por alguém, em fins da era colonial, de que nas tendas de comerciantes se distribuíam as coisas mais disparatadas deste mundo, e era tão fácil comprarem-se ferraduras a um boticário como vomitórios a um ferreiro. Poucos indivíduos sabiam dedicar-se a vida inteira a um só mister sem se deixarem atrair por outro negócio aparentemente lucrativo. E ainda mais raros seriam os casos em que um mesmo ofício perdurava na mesma família por mais de uma geração, como acontecia normalmente em terras onde a estratificação social alcançara maior grau de estabilidade. [...]

Da tradição portuguesa, que mesmo em território metropolitano jamais chegara a ser extremamente rígida nesse particular, pouca coisa se conservou entre nós que não tivesse sido modificada ou relaxada pelas condições adversas do meio. Manteve-se melhor do que outras, como é fácil imaginar, a obrigação de irem os ofícios embandeirados, com suas insígnias, às procissões reais, o que se explica simplesmente pelo gosto do aparato e o dos espetáculos coloridos, tão peculiar à nossa sociedade colonial.

Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 57-59)




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