segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A cidade colonial

No Brasil colonial, entretanto, as terras dedicadas à lavoura eram a morada habitual dos grandes. Só afluíam eles aos centros urbanos a fim de assistirem aos festejos e solenidades. Nas cidades apenas residiam alguns funcionários da administração, oficiais mecânicos e mercadores em geral. [...]

Na Bahia, o centro administrativo do país durante a maior parte do período colonial, informa-nos Capistrano de Abreu que as casas, fechadas quase todo o ano, só se i enchiam com as festas públicas. “A cidade” , diz, “ saía da vida sorna muito poucas vezes por ano. Gabriel Soares fala de uma honesta praça em que corriam touros quando convinha. Repetiam-se as festas eclesiásticas com suas procissões e figurações e cantorias ao ar livre; dentro da igreja representavam-se comédias e com pouco alinho, se, como jura uma testemunha, podia alguém sentar-se no altar. Esvaziavam-se então os engenhos; podia exibir-se o luxo, que não se limitava como hoje a um sexo único...” Em outro lugar, referindo-se ainda à cidade do Salvador no século XVI, diz o mesmo historiador: “ [...] cidade esquisita, de casas sem moradores, pois os proprietários passavam o mais tempo em suas roças rurais, só acudindo no tempo das festas. A população urbana constava de mecânicos, que exerciam seus ofícios, de mercadores, de oficiais de justiça, de fazenda, de guerra, obrigados à residência” .

Idêntica, segundo outros depoimentos, era a situação nas demais cidades e vilas da colônia. Sucedia, assim, que os proprietários se descuidavam freqüentemente de suas habitações urbanas, dedicando todo o zelo à moradia rural, onde estava o principal de seus haveres e peças de luxo e onde podiam receber, com ostentosa generosidade, aos hóspedes e visitantes. Como na Florença do Renascimento, onde, dizia Giovanni Villani, as “vilas” dos homens ricos, situadas nas campinas toscanas, eram mais belas do que as casas da cidade e nelas se gastava muito mais do que seria razoável. 

As referências que se acabam de citar relacionam-se principalmente com o primeiro e o segundo século da colonização; já no terceiro, a vida urbana, em certos lugares, parece adquirir mais caráter, ( com a prosperidade dos comerciantes reinóis, instalados nas cidades. Em 1711, Antonil declarava que ter os filhos sempre no engenho era “criá-los tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais do que do cão, do cavalo, e do boi. Deixá-los sós na cidade é dar-lhes liberdade para se fazerem logo viciosos e encherem-se de vergonhosas doenças, que se não podem facilmente curar” .

Mas ainda assim não devia ser muito favorável às cidades a comparação entre a vida urbana e a rural por essa época, se é certo o que dizia o conde de Cunha, primeiro vice-rei do Brasil, em carta escrita ao rei de Portugal em 1767, onde se descreve o Rio de Janeiro como só habitado de oficiais mecânicos, pescadores, marinheiros, mulatos, pretos boçais e nus, e alguns homens de negócios, dos quais muito poucos podem ter esse nome, sem haver quem pudesse servir de vereador, nem servir cargo autorizado, pois as pessoas de casas nobres e distintas viviam retiradas em suas fazendas e engenhos. 

Esse depoimento serve para atestar como ainda durante a segunda metade do século XVIII persistia bem nítido o estado de coisas que caracteriza a nossa vida colonial desde os seus primeiros tempos. A pujança dos domínios rurais, comparada à mesquinhez urbana, representa fenômeno que se instalou aqui com os colonos portugueses, desde que se fixaram à terra. E essa singularidade avulta quando posta em contraste com o que realizaram os holandeses em Pernambuco. Já se assinalou no capítulo anterior como a Companhia das índias Ocidentais não conseguiu, durante a conquista de nosso Nordeste, apesar de todo o seu empenho em obter uma imigração rural considerável, senão aumentar o afluxo de colonos urbanos. A vida de cidade desenvolveu-se de forma anormal e prematura. Em 1640, enquanto nas capitanias do Sul, povoadas por portugueses, a defesa urbana era encarada, às vezes, como sério problema, devido à escassez dos habitantes, o que se dava no Recife era justamente o contrário: escassez notável de habitações para abrigar novos moradores, que não cessavam de afluir. Referem documentos holandeses que por toda parte se improvisavam camas para os recém-chegados à colônia. Por vezes, em um só aposento, sob um calor intolerável, deitavam-se três, quatro, seis e às vezes oito pessoas. Se as autoridades neerlandesas não tomassem providências rigorosas para facilitar o alojamento de toda essa gente, só restaria um remédio: ir residir nas estalagens do porto. “E estas” , diz um relatório holandês, “são os lupanares mais ordinários do mundo. Ai do moço de família que cair ali! Estará condenado irremediavelmente à desgraça.”

Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 90-92)

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