segunda-feira, 30 de setembro de 2019

As Minas Gerais no século XVIII

No terceiro século do domínio português é que temos um afluxo maior de emigrantes para além da faixa litorânea, com o descobrimento do ouro das Gerais, ouro que, no dizer de um cronista do tempo, “passa em pó e em moeda para os reinos estranhos; e a menor parte he a que fica em Portugal e nas cidades do Brasil, salvo o que se gasta em cordões, arrecadas e outros brincos, dos quaes se vem hoje carregadas as mulatas de máo viver, muito mais que as senhoras” . E mesmo essa emigração faz-se largamente a despeito de ferozes obstruções artificialmente instituídas pelo governo; os estrangeiros, então, estavam decididamente excluídos delas (apenas eram tolerados — mal tolerados — os súditos de nações amigas: ingleses e holandeses), bem assim como os monges, considerados dos piores contraventores das determinações régias, os padres sem emprego, os negociantes, estalajadeiros, todos os indivíduos, enfim, que pudessem não ir exclusivamente a serviço da insaciável avidez da metrópole. Em 1720 pretendeu-se mesmo fazer uso de um derradeiro recurso, o da proibição de passagens para o Brasil. Só as pessoas investidas de cargo público poderiam embarcar com destino à colônia. Não acompanhariam esses funcionários mais do que os criados indispensáveis. Dentre os eclesiásticos podiam vir os bispos e missionários, bem como os religiosos que já tivessem professado no Brasil e precisassem regressar aos seus conventos. Finalmente seria dada licença excepcionalmente a particulares que conseguissem justificar a alegação de terem negócios importantes, e comprometendo-se a voltar dentro de prazo certo. 

Então, e só então, é que Portugal delibera intervir mais energicamente nos negócios de sua possessão ultramarina, mas para usar de uma energia puramente repressiva, policial, e menos dirigida a edificar alguma coisa de permanente do que a absorver tudo quanto lhe fosse de imediato proveito. É o que se verifica em particular na chamada Demarcação Diamantina, espécie de Estado dentro do Estado, com seus limites rigidamente definidos, e que ninguém pode transpor sem licença expressa das autoridades. Os moradores, regidos por leis especiais, formavam como uma só família, governada despoticamente pelo intendente-geral. “Única na história” , observa Martius, “essa idéia de se isolar um território, onde todas as condições civis ficavam subordinadas à exploração de um bem exclusivo da Coroa.” 

A partir de 1771, os moradores do distrito ficaram sujeitos à mais estrita fiscalização. Quem não pudesse exibir provas de identidade e idoneidade julgadas satisfatórias devia abandonar imediatamente a região. Se regressasse, ficava sujeito à multa de cinqüenta oitavas de ouro e a seis meses de cadeia; em caso de reincidência, a seis anos de degredo em Angola. E ninguém poderia, por sua vez, pretender residir no distrito, sem antes justificar minuciosamente tal pretensão. Mesmo nas terras próximas à demarcação, só se estabelecia quem tivesse obtido consentimento prévio do intendente. “A devassa geral, que se conservava sempre aberta” , diz um historiador, “era como uma teia imensa, infernal, sustentada pelas delações misteriosas, que se urdia nas trevas para envolver as vítimas, que muitas vezes faziam a calúnia, a vingança particular, o interesse e ambição dos agentes do fisco.” 

Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 82)

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