segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O poder do Senhor de Engenho

Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela onde se rezavam as missas. Tinha escola de primeiras letras, onde o padre-mestre desasnava meninos. A alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes, freqüentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça, da pesca proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam- se as serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além da madeira para as casas: a obra dessas serrarias chamou a atenção do viajante Tollenare, pela sua “execução perfeita”. [...]

A propósito dessa singular autarquia dos domínios rurais brasileiros, conservou-nos frei Vicente do Salvador a curiosa anedota onde entra certo bispo de Tucumã, da Ordem de São Domingos, que por aqui passou em demanda da corte dos Filipes. Grande canonista, homem de bom entendimento e prudência, esse prelado notou que, quando mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer, nada lhe traziam, porque não se achavam dessas coisas na praça, nem no açougue, e que, quando as pedia às casas particulares, logo lhas mandavam. “Então disse o bispo: verdadeiramente que j nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa.” “E assim é” , comenta frei Vicente, contemporâneo do episódio, “ que estando as casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, pois muitos devem quanto têm) providas de todo o necessário, porque têm escravos, pescadores e caçadores que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto nas vilas, muitas vezes se não acha isto de venda.”

No Maranhão, em 1735, queixava-se um governador de que não vivia a gente em comum, mas em particular, sendo a casa de cada habitante ou de cada régulo uma verdadeira república, porque tinha os ofícios que a compõem, como pedreiros, carpinteiros, barbeiros, sangrador, pescador etc.10 Com pouca mudança, tal situação prolongou-se, aliás, até bem depois da Independência e sabemos que, durante a grande época do café na província do Rio de Janeiro, não faltou lavrador que se vangloriasse de só ter de comprar ferro, sal, pólvora e chumbo, pois o mais davam de sobra suas próprias terras. 

Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra “ família” , derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à idéia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi. 

Dos vários setores de nossa sociedade colonial, foi sem dúvida a esfera da vida doméstica aquela onde o princípio de autoridade menos acessível se mostrou às forças corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturbá-lo ou oprimi-lo. 

Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 80-82)

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