segunda-feira, 30 de setembro de 2019

O cenário do Brasil ao final do século XIX

A ânsia de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades de crédito, contaminou logo todas as classes e foi uma das características notáveis desse período de “prosperidade” . O fato constituía singular novidade em terra onde a idéia de propriedade ainda estava intimamente vinculada à da posse de bens mais concretos, e ao mesmo tempo menos impessoais do que um bilhete de banco ou uma ação de companhia. Os fazendeiros endividados pelo recurso constante aos centros urbanos, onde se proviam de escravos, não encaravam sem desconfiança os novos remédios que, sob a capa de curar enfermidades momentâneas, pareciam uma permanente ameaça aos fundamentos tradicionais de seu prestígio. Em São Paulo chegou-se mesmo a falar em socialismo a propósito de certo projeto de criação de um banco rural e hipotecário. É que os socialistas, clamava um deputado à Assembléia Provincial, sendo “inimigos capitais das propriedades imóveis, se lembraram disto como meio de converterem essas propriedades em capitais...” .

Ao otimismo infrene daqueles que, sob o regime da ilimitada liberdade de crédito, alcançavam riquezas rápidas, correspondia a perplexidade e o descontentamento dos outros, mais duramente atingidos pelas conseqüências da cessação do tráfico. Num depoimento citado por Nabuco lê-se este expressivo desabafo do espírito conservador diante dos costumes novos, acarretados pela febre das especulações: “Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que, esquecida de sua própria casa, deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filantropia, o fado do nosso escravo feliz. Antes bons negros da costa da África para cultivar os nossos campos férteis do que todas as tetéias da rua do Ouvidor, do que vestidos de um conto e quinhentos mil-réis para as nossas mulheres; do que laranjas a quatro vinténs cada uma em um país que as produz quase espontaneamente, do que milho e arroz, e quase tudo que se necessita para o sustento da vida humana, do estrangeiro, do que finalmente empresas mal avisadas, muito além das legítimas forças do país, as quais, perturbando as relações da sociedade, produzindo uma deslocação de trabalho, têm promovido mais que tudo a escassez e alto preço de todos os víveres” .

A própria instabilidade das novas fortunas, que ao menor vento contrário se desfaziam, vinha dar boas razões a esses nostálgicos do Brasil rural e patriarcal. Eram dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas mentalidades que se opunham como ao racional se opõe o tradicional, ao abstrato o corpóreo e o sensível, o citadino e cosmopolita ao regional ou paroquial.

Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 77-78)

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