terça-feira, 20 de julho de 2021

Cornita

 - Pai, o que é cornita?

- Como é que se escreve?

- Ce, o, erre, ene, i, te, a.

O pai pensou um pouco. Não podia dizer que não sabia. O garo­to há muito descobrira que o pai não era o homem mais forte do mundo. Precisava mostrar que, pelo menos, não era dos mais burros. Perguntou como é que a palavra estava usada.

- Aqui diz, “a cornita da igreja...” - respondeu o garoto.

- Ah, esse tipo de cornita. É um ornamento, na forma de corno, que fica do lado do altar.

- Pra que que serve?

- Pra, ahn, nada. É um símbolo.

- Ah.


- Pai, usei “cornita” numa redação e a professora disse que a palavra não existe.

- O quê? Mas que professora é essa?

- Ela diz que nunca ouviu falar.

- Pois diga para ela que “cornita”, embora não faça mais parte da arquitetura canônica, era muito usada nas igrejas medievais.

-Tá.


- Pai, a professora continua dizendo que “cornita” não existe. E diz que também não se diz “arquitetura canônica”.

- Preciso ter uma conversa com essa professora. Essa edu­cação de hoje...


- Não quero discutir com a senhora. Mas também não quero ver meu filho duvidando do próprio pai. Para começar, minha senhora, aqui está o livro que meu filho estava lendo. E aqui está a palavra. “Cornita”.

- Deixe eu ver. Obviamente, era para ser “cornija”. É um erro de imprensa.

- O quê?

- Um erro de revisão. “Cornija”. Ornamentação muito usada na arquitetura antiga. “Cornita” não existe.

- Pai, vamos pra casa... .

- Um momentinho. Um momentinho! Claro que eu sei o que é “cornija”. Mas existem as duas palavras. “Cornija” e “cornita”. Duas coisas completamente diferentes.

- Então me mostre “cornita” no dicionário.

- Ora, no dicionário. E a senhora ainda confia nos nossos dicionários?

- Pai, vamos embora...


- O que é isto, pai?

- Um pequeno tratado que fiz para a sua professora, aquela mula, ler. Dezessete páginas. Pouca coisa. Nele, traço desde a origem etimológica da palavra “cornita”, no sânscrito, até a sua sim­bologia no ritual da Igreja antes do concílio de Trento, incluindo o número de vezes em que o termo aparece na obra de Vouchard de Mesquieu sobre a arquitetura canônica. E sublinhei “arquitetura canônica”, para a mula aprender a jamais desmentir um pai.

- Certo, pai.


- Pai....

- O que é?

- A professora leu o seu tratado.

- E então?

- Mandou pedir desculpas. Diz que o senhor é um homem muito etudito.

- Erudito.

- Erudito. Mandou pedir desculpas. A burra era ela.

- Está bem, meu filho. Pelo menos agora ela sabe com quem está tratando.

Valera a pena. Valera até as noites perdidas inventando os dados do tratado. Sabia que acabaria convencendo a mulher com um ataque maciço de erudição, mesmo falsa. Vouchard de Mesquieu. Aquele fora o golpe de mestre. Vouchard de Mesquieu. Perdera uma hora só para encontrar o nome certo. Mas estava redimido.


VERÍSSIMO, Luis Fernando. Outras do analista de Bagé. Porto Alegre: L&PM, 1982, p. 18-20.

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