quarta-feira, 10 de julho de 2019

Os holandeses tentam dominar a colônia portuguesa na América

Apenas o tipo de colonos que eles nos puderam enviar, durante todo o tempo de seu domínio nas terras do Nordeste brasileiro, era o menos adequado a um país em formação. Recrutados entre aventureiros de toda espécie, de todos os países da Europa, “homens cansados de perseguições”, eles vinham apenas em busca de fortunas impossíveis, sem imaginar criar fortes raízes na terra.

O malogro de várias experiências coloniais dos Países Baixos no continente americano, durante o século XVII, foi atribuído em parte, e talvez com justos motivos, à ausência, na mãe-pátria, de descontentamentos que impelissem à migração em larga escala. [...]

 O exército da Companhia, que lutava em Pernambuco, constava principalmente de alemães, franceses, ingleses, irlandeses e neerlandeses.

Entre seus generais mais famosos, um era o fidalgo polonês Cristóvão Arciszewski, que fora obrigado a deixar sua pátria, onde, segundo consta, era perseguido devido às suas idéias socinianas e antijesuíticas, outro o alemão Sigismundo von Schkopp, sobre cujos antecedentes nada se sabe de certo até hoje.

População cosmopolita, instável, de caráter predominantemente urbano, essa gente ia apinhar-se no Recife ou na nascente Mauritsstad, que começava a crescer na ilha de Antônio Vaz. Estimulando, assim, de modo prematuro, a divisão clássica entre o engenho e a cidade, entre o senhor rural e o mascate, divisão que encheria, mais tarde, quase toda a história pernambucana.

Esse progresso urbano era ocorrência nova na vida brasileira, e ocorrência que ajuda a melhor distinguir, um do outro, os processos colonizadores de “ flamengos” e portugueses. Ao passo que em todo o resto do Brasil as cidades continuavam simples e pobres dependências dos domínios rurais, a metrópole pernambucana “vivia por si”. Ostentavam-se nela palácios monumentais como o de Schoonzicht e o de Vrijburg. Seus parques opulentos abrigavam os exemplares mais vários da flora e da fauna indígenas. Neles é que ; os sábios Piso e Marcgrave iam encontrar à mão o material de que precisavam para a sua Historia naturalis brasiliae e onde Franz Post se exercia em transpor para a tela as cores magníficas da natureza tropical. Institutos científicos e culturais, obras de assistência de toda ordem e importantes organismos políticos e administrativos (basta dizer-se que em 1640 se reunia em Recife o primeiro Parlamento de que há notícia no hemisfério ocidental) davam à sede do governo da Nova Holanda um esplendor que a destacava singularmente no meio da miséria americana. Para completar o quadro, não faltavam sequer os aspectos escuros, tradicionais na vida urbana de todos os tempos: já em 1641, a zona do porto de Recife constituía, para alguns zelosos calvinistas, verdadeiro “antro de perdição”. [...]

Seu empenho de fazer do Brasil uma extensão tropical da pátria européia sucumbiu desastrosamente ante a inaptidão que mostraram para fundar a prosperidade da terra nas bases que lhe seriam naturais, como, bem ou mal, já o tinham feito os portugueses. Segundo todas as aparências, o bom êxito destes resultou justamente I de não terem sabido ou podido manter a própria distinção com o mundo que vinham povoar. Sua fraqueza foi sua força.

Não pouparam esforços, os holandeses, para competir com seus predecessores na vida da lavoura. Apenas os elementos de que dispunham não se adaptavam a essa vida. Só um ou outro arriscava-se a abandonar a cidade pelas plantações de cana. E, em 1636, os membros do Conselho Político, alarmados ante a perspectiva de ruína, por estarem em mãos de portugueses e sobretudo luso-brasileiros as grandes fontes de riqueza da Nova Holanda, pensaram resolver o problema, tentando importar numerosas famílias de lavradores da mãe-pátria. Seria esse o modo de se prevenirem contra os germes de futuras complicações. “ Só quando tivermos numerosos filhos dos Países Baixos residindo entre os portugueses nos terrenos da lavoura é que estará assegurado nosso domínio sobre o elemento mais irrequieto da população”, diziam o Statthalter e o Conselho ao Diretório da Companhia das índias Ocidentais, em janeiro de 1638. Para isso reclamava-se com urgência, de Amsterdam, a remessa de mil a 3 mil camponeses. Mas esperou-se em vão. Os camponeses deixaram-se ficar, aferrados aos seus lares. Não os seduzia uma aventura que tinham boas razões para supor arriscada e duvidosa. [...]

A própria língua portuguesa parece ter encontrado, em confronto com a holandesa, disposição particularmente simpática em muitos desses homens rudes. Aquela observação, formulada séculos depois por um Martius, de que, para nossos índios, os idiomas nórdicos apresentam dificuldades fonéticas praticamente insuperáveis, ao passo que o português, como o castelhano, lhes é muito mais acessível, puderam fazê-la bem cedo os invasores. Os missionários protestantes, vindos em sua companhia, logo perceberam que o uso da língua neerlandesa na instrução religiosa prometia escasso êxito, não só entre os africanos como entre o gentio da terra. Os pretos velhos, esses positivamente não o aprendiam nunca. O português, ao contrário, era perfeitamente familiar a muitos deles. A experiência demonstrou, ao cabo, que seu emprego em sermões e prédicas dava resultados mais compensadores. E assim serviram-se, às vezes, do idioma dos vencidos no trato com os pretos e os naturais da terra, quase como os jesuítas se serviam da língua-geral para catequizar índios, mesmo tapuias. Importante, além disso, é que, ao oposto do catolicismo, a religião reformada, trazida pelos invasores, não oferecia nenhuma espécie de excitação aos sentidos ou à imaginação dessa gente, e assim não proporcionava nenhum terreno de transição por onde sua religiosidade pudesse acomodar-se aos ideais cristãos.

Sérgio Buarque de Holanda, "Raízes do brasil" (1936).
Da edição Companhia das Letras (1995: 62-65)

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