sexta-feira, 16 de julho de 2021

Fagundes Varela - Mauro, o escravo

A Sentença

I

Na sala espaçosa, cercado de escravos

Nascidos nas selvas, robustos e bravos,

Mas presos agora de infindo terror;

Lotário pensava, Lotário o potente,

Lotário o opulento, soberbo e valente,

De um povo de humildes tirano e senhor.

II

Nas rugas da fronte fatídica e rude

Não tinham-lhe as rosas de longa virtude

Do tempo os vestígios lavado em perfumes;

Nublava-lhe o rosto, mais negros fazia

Dos olhos ardentes os férvidos lumes.

III

No inverno da vida, dos tempos passados

Ninguém lhe sabia. Boatos ousados

Erguiam-se às vezes; mas ah! que diziam?

Lotário era grande; seus bosques passavam

Das serras além; seus campos brotavam

Riquezas imensas, que a tudo cobriam.

IV

Depois, é tão fácil na sombra noturna

O inseto esmagar-se, de voz importuna,

Que o ouvido nos enche de tédio e do nojo!

Um gesto... uma espera... na estrada uma cruz...

Só sabem-no as selvas, os fossos sem luz

E as serpes que a plaga percorrem de rojo.

V

Na sala espaçosa Lotário pensava.

Roberto seu filho de um lado esperava

Tremente, ansioso, que o pai lhe falasse.

A turba de servos imóveis, silentes

Os braços cruzados, as frontes pendentes,

A voz aguardava que as ordens ditasse.

VI

- Conduzam-me o escravo! - Lotário bradou; -

O bando de humildes a sala deixou

Às torvas palavras do torvo senhor.

Lotário sombrio voltou-se a seu filho,

De quem, dos olhares, corria, no brilho,

A chama sinistra de um gênio traidor.

VII

- Sossega, Roberto; - lhe disse - é forçoso

Que eu puna o africano feroz, revoltoso,

Que ousou levantar-se da lama a teus pés.

Roberto curvou-se. O pai se afastando

Sentou-se, e, os sobrolhos fatais carregando,

Em cisma profunda perdeu-se outra vez.

VIII

Momentos passados, um surdo ruído

Ergueu-se da escada, por entre o tinido

De férreas cadeias batendo no chão,

E os servos de volta, trazendo o culpado

Tristonho, olhos baixos, o dorso arqueado,

No centro pararam do antigo salão.

IX

Silêncio profundo! nem um movimento

Se via no grupo, que trêmulo e atento

A voz esperava que alçasse o senhor;

Lotário media severo o cativo,

E as faces do filho tirânico e altivo

Cobriam-se aos poucos de vivo rubor.

X

- Escravo, aproxima-te. Ao mando potente,

Moveu-se o inditoso brandindo a corrente,

E erguendo a cabeça fitou seu juiz;

Que traços distintos! que nobre composto!

Que lume inspirado saltava do rosto,

Dos olhos doridos do escravo infeliz!

XI

Oh! Mauro era belo! Da raça africana

Herdara a coragem sem par, sobre-humana,

Que aos sopros do gênio se torna um vulcão.

Apenas das faces um leve crestado,

Um fino cabelo, contudo anelado,

Traíam do sangue longínqua fusão.

XII

Trinta anos contava; trinta anos de dores

Do estio da vida secaram-lhe as flores

Que a aurora banhara de orvalhos e luz,

Deixando-lhe apenas um ódio sem termos,

E d'alma indomável, nos cálidos ermos,

A chama vivaz que a força traduz.

XIII

Mas isto que importa? dos mares no fundo,

No lodo viscoso do pântano imundo,

Tem brilhos o ouro, cintila o diamante?

E a testa cingida de etéreo laurel

Tem vida se o mundo nodoa-se de fel

E curva aos martírios de um jugo aviltante?

XIV

- Conheces teu crime? - gritou o senhor. -

- Não! - Mauro responde com frio amargor,

O tigre encarando que em raiva o media.

- Pois que, desgraçado! - fremente exclamou,

E erguendo-se rubro, Lotário avançou

Ao servo impassível que ao raio sorria.

XV

- Pois que, desgraçado! tu zombas de mim!

E ousado, insolente contemplas-me assim!

A mão levantando Lotário bramiu.

Mas frio, tranqüilo, sereno o semblante,

Sem dar nem um passo, mover-se um instante,

O escravo arrogante de novo sorriu.

XVI

Conteve-se o bárbaro. - Mísero cão!

Humilha-te, abaixa-te, é tempo, senão

Com férreos açoutes arranco-te a vida!

- Conheces teu crime?

- Ignoro, senhor;

Minh'alma é tranqüila, só tenho uma dor,

E essa é de funda, secreta ferida.

XVII

- Tu'alma é tranqüila! Tu nada fizeste?

Tu contra meu filho brutal não te ergueste,

Nem duros insultos lançaste-lhe às faces?

- Não nego, é verdade.

- Confessas?

- Confesso!

E o escravo agitou-se, do ódio no excesso,

Lançando dos olhos centelhas fugazes.

XVIII

Lotário tremeu. Nas luzes febrentas

Daquelas faíscas, passaram sedentas

As fúrias medonhas de eterna vingança.

Calou-se um momento, sombrio, engolfado

Num pego de idéias, talvez despertado

Ao súbito choque de viva lembrança.

XIX

Mas logo de novo raivoso, incendido,

Voltou-se ao cativo: - Cativo atrevido,

Porque ultrajaste teu amo e senhor?

- Porque? - disse Mauro; porque? vou dizer;

Porque? eu repito que assim é mister:

Teu filho é um cobarde, teu filho é um traidor!

XX

- Segurem-no!... branco, de cólera arfando,

Rugiu o tirano, convulso, apontando

O escravo rebelde que os ferros brandia.

Segurem-no! e aos golpes de rábido açoite,

Lacerem-lhe as carnes de dia e de noite,

Até que lhe chegue final agonia!

XXI

O bando de servos lançou-se, ao mandado.

- Ninguém se aproxime! - bradou exaltado

O moço cativo sustendo a corrente.

A turba afastou-se medrosa e tremendo

E Mauro sublime, seu ódio contendo,

Falou destemido do déspota à frente:

XXII

- Não creias que eu tema! não creias que escravo

Suplícios me curvem, ai! não, que sou bravo!

Porque me condenas? que culpa me oprime,

De fogos impuros, lascivos, sedento,

Lançasse a inocência nas lamas do crime?

XXIII

Oh! sim, sim, teu filho, no lúbrico afã,

Tentou à desonra levar minha irmã!

Ai! ela não tinha que um mísero irmão!...

Ergui-me em defesa, teus ferros esmagam,

Humilham, rebaixam, porém não apagam

Virtudes e crenças, dever e afeição!

XXIV

Fiz bem! Deus me julga! Tu sabes meu crime,

O fero delito que a fronte me oprime,

As faltas nefandas, os negros horrores;

Agora prossegue, prossegue, estou mudo,

Condena-me agora que sabes de tudo,

Abafa-me ao peso de estólidas dores!

XXV

E Mauro calou-se. Mais frio que a morte,

Mais trêmulo que os juncos ao sopro do norte,

À viva ironia Lotário abalou-se.

- Afastem-no!... Afastem-no! ergueu-se rugindo,

E a turba dos servos, o escravo impelindo,

Em poucos instantes da sala afastou-se.

XXVI

Ah! mísero Mauro! passados momentos,

Terrível sentença dos lábios sedentos

Baixou o tirano, que em fúria ardia:

- Amarrem-no, e aos golpes de rábido açoite,

Lacerem-lhe as carnes de dia e de noite,

Até que lhe chegue final agonia.

XXVII

Mas quando a alvorada no espaço raiava,

E os bosques, e os campos, risonha inundava

Das longas delícias do etéreo clarão,

O escravo rebelde debalde buscaram,

Cadeias rompidas somente encontraram,

E a porta arrombada da dura prisão.


[O Suplício]

I

Na hora em que o horizonte empalidece,

Em que a brisa do céu vem suspirosa

De úmidos beijos afagar as flores,

E um véu ligeiro de sutis vapores

Baixa indolente da montanha umbrosa

II

Na hora em que as estrelas estremecem

Lágrimas de ouro no sidério manto,

E o grilo canta, e o ribeirão suspira,

E a flor mimosa que ao frescor transpira

Peja os desertos de suave encanto;

III

Na hora em que o riacho, a veiga, o inseto,

A serra, o taquaral, o brejo e a mata

Falam baixinho, a cochichar na sombra,

E as moles felpas da campestre alfombra

Molham-se em fios de fundida prata;

IV

Na hora em que se abala o santo bronze

Da igrejinha gentil no campanário,

Uma voz lacerada, enfraquecida,

Levantava-se amarga e dolorida

Da sombria morada de Lotário.

 II

Eu vou morrer, meu Deus! já sinto as trevas,

As trevas de outro mundo que me cercam!

Já sinto o gelo correr nas veias,

E o coração calar-se pouco a pouco!

II

Eu vou morrer, meu Deus! minh´alma luta,

E em breve tempo deixará meu corpo...

Tudo em torno de mim foge... se afasta...

Já estas dores não me pungem tanto!

III

Não... meus sentidos se entorpecem. Belo

O meu anjo da guarda me contempla;

Meu seio bebe virações mais puras,

Creio que vou dormir... sim, tenho sono.

IV

Minha mãe!... meu irmão!... eu não os vejo!

Vinde abraçar-me, que padeço muito!

Mas debalde vos chamo... Adeus... adeus

Eu vou morrer... eu morro... tudo é findo...

V

E a voz debilitava-se, fugia,

Como o gemido febril de um rola

Nos complicados dédalos da selva,

Até que em breve se escutava apenas

O estalo do azorrague amolecido,

Sobre as feridas do coalhado sangue

Da pobre irmã do desditoso Mauro.

VI

- Basta! - bradou um dos algozes - basta!

Deixai-a agora descansar um pouco,

Repousemos também; meu braço é fraco,

Inunda-me o suor! logo... mais tarde

Logo? estais doudo? a criatura há muito

Que sacudiu as asas.

 - Sim!... é pena.

- Apalpai-a e vereis.

 - Com mil diabos!

Ide ao amo falar, - responde o outro,

Limpando na parede a mão molhada.

VII

Os que este ofício lúgubre cumpriam

Era um branco robusto, olhar sinistro,

Cabeça de pantera; o outro um negro

Possante e gigantesco; as costas nuas

Deixavam ver os músculos de bronze

Onde o suor corria gota a gota.

VII

- Meu senhor...

 - O que queres? fala e deixa-me.

Lotário respondeu voltando o rosto

Ao servo hercúleo que da porta, humilde,

Lhe vinha interromper nas tredas cismas.

- A mulata morreu.

 - Pois bem, que a deixem

E enterrem-na manhã.

 A esta resposta

Decisiva e lacônica, o africano

Retirou-se a buscar seu companheiro,

Deixando o potentado, que de novo

Mergulhou-se nas fundas reflexões.

IX

Ao vivo encanto de uma aurora esplêndida

Voltando o rosto a noite despeitada

Cedeu-lhe a criação, e foi ciosa

Esconder-se em seus antros. As florestas

Sacudiam a coma embalsamada,

Onde ao lado da flor o passarinho

Se desfazia em queixas amorosas.

Tudo era belo, radiante e puro,

Palpitante de vida; a natureza

Como noiva feliz, tinha trajado

As mais soberbas galas, e estendia

Os seus lábios de rosa ao rei dos astros,

Que ansioso tremia no oriente

Para libar-lhe seu primeiro beijo.

X

Mas através do manto vaporoso,

Que leve e tênue para o céu se eleva

Nas madrugadas festivais do estio,

Um grupo silencioso caminhava

Pela encosta do monte, conduzindo

Um fardo estranho e dúbio; era uma rede

Nodoada de sangue! um corpo longo,

Rijo, estendido, desenhava as formas

Sobre o sórdido estofo. A madrugada

Que tão linda ostentava-se no espaço,

Tristonha e temerosa, parecia

Das vestes alvas afastar a fímbria

Desta cena sinistra e ensangüentada!

XI

Chegando ao topo da montanha, os vultos

Pararam, descansando sobre a terra

O peso mortuário. A natureza

Que provida lançara o encanto e a vida

Ao redor deste sítio, parecia

Ter-lhe Tudo negado. o solo ingrato

Revolto, seco nem sequer mostrava

Uma gota de orvalho; desde a relva

Macia e vigorosa até a urtiga

Nada crescia ali! Triste, solene,

Sobre um monte de pedras, levantava-se

Apenas uma cruz em cujos braços

Dous pássaros beijavam-se gemendo.

XII

- Pega na enxada e cava; disse o homem

Que presidia ao bárbaro suplício

Da pobre irmã de Mauro - abre uma cova

Aqui neste lugar, e bem depressa,

Oito palmos de fundo e três de largo,

Atira dentro o corpo da mulata,

Cobre de terra e calca. Estas palavras

Foram ditas ao negro gigantesco

Que à véspera sorria-se, rasgando

As carnes da infeliz. Depois voltando-se

Aos outros desgraçados: - venham todos,

São horas dos trabalhos! e partiram.

XII

Em breve tempo os golpes compassados

De uma enxada pesada, começaram

A cair sobre a terra, lentamente

Abrindo o último leito da inditosa.

O feroz africano prosseguia

No seu lúgubre ofício sem ao menos

Levantar a cabeça. Alguns minutos

Já tinham decorrido quando em frente

Uma voz retumbante levantou-se

Fazendo ouvir-lhe o nome, o brônzeo monstro

Parou, volveu em torno o olhar selvagem,

E murmurou estremecendo: - Mauro!...

XIV

Sim, era Mauro, e quão mudado estava!

Dias sem luzes, noites sem descanso,

Tinham dez anos lhe roubado a vida!

Naquela fronte cismadora e doce,

Onde luziu resignação outrora,

Passavam nuvens de fatal vingança,

De planos infernais! Naqueles olhos

Donde incessante vislumbrava o gênio,

O gênio que o Senhor prefere às vezes

Sobre a choça lançar do que nos paços,

O gênio que alimenta-se de dores

E vive de amargor, naqueles olhos

Raios de sangue se cruzavam, rápidos!

A face descarnara-se, os cabelos,

Os cabelos, oh! Deus, negros, luzentes,

Em poucos dias alvejaram! Mauro

Era uma sombra apenas e uma idéia:

Sombra de dor, idéia de vingança!

XV

Não era o seu trajar o de um escravo,

Nem também de um senhor. Sombria capa,

Grosseira, embora, lhe cobria os ombros

E deixava entrever pendente à cinta

Uma faca ou punhal; largo chapéu

De retorcidas abas inclinava-se

Mostrando a vasta fronte; uma espingarda

Trazia à mão direita. Onde encontrara

O escravo estes recursos? Não se sabe.

Dera-lhe alguém, ou os roubara? Mauro

Era nobre de mais: desde criança

Bebera as leis de Deus dos santos lábios

Do velho missionário, e aprendera

A decifrá-las nos sagrados livros,

Embora a furto, a medo, que ao cativo

É crime levantar-se além dos brutos.

XVI

- Mauro!... de novo estupefato, trêmulo,

Ao aspecto do trânsfuga sinistro

O negro murmurou:

 - Oh! sim, é Mauro!

Bradou aquele adiantando-se; abre

Esta rede depressa, quero vê-la,

Vê-la ainda uma vez, depois... vingá-la!

- É tua irmã...

 - Bem sei. Abre essa rede,

Abre essa rede, digo-te!

 - O africano

Deixou a enxada e foi abri-la. Oh! Deus!

Não era um corpo humano, era um composto

De carnes laceradas, roxas, fétidas,

Inundadas de sangue! Massa informe

De músculos polutos, negro emblema

De quanto há de feroz, bárbaro e tétrico,

Cruentamente horrível! O cativo

Exalou da garganta um som pungente,

Tigrino, e tão selvagem, que o africano

Sentiu um calafrio; ergueu os olhos

Abrasados ao céu, depois sem forças

De joelhos caiu junto ao cadáver

E se desfez em lágrimas ardentes,

Em soluços doridos. Impassível,

Frio como as estátuas indianas,

O negro contemplava este espetáculo

Que abalaria de piedade as pedras,

E susteria as rábidas torrentes

Nas rochas encarpadas!

 - Bem; é tempo,

Basta de inútil pranto! disse Mauro

Erguendo-se do chão; - e tu agora,

- Falou fitando o túrbido coveiro -

Cumpre teu dever!... De novo os olhos

Encheram-se de lágrimas. - Adeus!

Adeus! mísera irmã, tu és ditosa!

Deus te deu a coroa do martírio

Para entrares no céu; a corte angélica

Espera-te sorrindo... e eu inda fico,

E tenho de esgotar até às fezes

A taça envenenada da existência!

 III

Tu passaste na terra como as flores

Que a geada hibernal derriba e mata;

Foram teus dias elos de teus ferros,

E teus prazeres lágrimas!

II

Negou-te a primavera um riso ao menos;

Dos sonhos na estação, nenhum tiveste;

A aurora que de luz inunda os orbes

Te abandonou nas trevas!

III

Alma suave a transpirar virtudes,

Gênio maldito arremessou-te ao lodo!

Buscaste as sendas lúcidas do Empíreo,

E apontaram-te o caos!

IV

A providência que os coqueiros une

Quando a tormenta pelo espaço ruge,

Até o braço de um irmão vedou-te,

Oh! planta solitária!

V

A morte agora te escutou, criança!

Trouxe a alvorada que esperaste embalde,

E adormecida nos seus moles braços

Pousou-te junto a Deus!...

XVII

Assim Mauro falou. Pesada e surda

A enxada do coveiro retumbava,

Como o bater funéreo e compassado

Do quadrante do tempo. O foragido

Lançou um olhar piedoso e triste

Sobre os restos da irmã, depois ligeiro

Afundou-se no dédalo das selvas.


[A Vingança]

I

Três vezes percorrido as doze casas

Tem o rei das esferas. É um dia

Brilhante e festival, cheio de júbilo

Nos imensos domínios de Lotário.

A habitação transborda de convivas,

Retroa a orquestra, tudo ri-se e folga,

E os próprios servos no terreiro juntos

Dançam contentes, sem lembrar-se ao menos

Da escravidão pesada. O que há de novo?

Que fato estranho há transformado a face

Desta sinistra e túrbida morada?

Não o sabeis? Roberto hoje casou-se,

Roberto, o filho amado de Lotário

Cujos domínios não abrange a vista:

Feliz três vezes a formosa noiva!

II

A dança, o riso, os brindes e as cantigas

Até à noite vão; quando já débeis

As luzes vacilam nos seus lustres,

E o cansaço abatia os seios todos;

Quando convulso o arco estremecia

Nas cordas da rebeca, e os olhos lânguidos

Percorriam os grupos fatigados,

Roberto palpitante de ventura,

Louco de amor, a fronte incandescente

De abrasadas idéias, afastou-se

Do meio dos convivas, e furtivo

Desceu ao campo a respirar as brisas

Embebidas dos lânguidos perfumes

Das noites do verão. Tudo era calmo,

Sereno e sossegado; a natureza,

Num leito de volúpias adormida,

Parecia sorrir-se desdenhosa

Ao júbilo ruidoso que partia

Da casa de Lotário. Pensativo

Roberto se sentou sobre uma pedra

À margem de um regato, abrindo o seio

Ao transpirar balsâmico das flores.

III

Nas noites de noivado, quem se atreve

A deixar o festim, antes que a aurora

Não surja no horizonte? Assim o moço,

Vendo inda longe a hora desejada,

Maldizia essa festa, esses convivas,

Essa ardente alegria, que adversa

Levantava-se entre ele e a noiva amada.

IV

Longo tempo assim ´steve, mergulhado

Nas suas reflexões; quando se erguia

Para voltar à casa, um vulto escuro

A passagem cortou-lhe. O moço, rápido,

Volveu um passo atrás, e sossegado

Deu seu primeiro susto, perguntou-lhe:

- Quem és tu? o que queres?

 Impassível,

O estrangeiro afastou as largas abas

De seu vasto chapéu.

 - Oh! Deus! é Mauro!

Mauro, o que queres? fala!

 - Eis o que quero!

O escravo respondeu vergando o moço

Com seus braços de ferro: - eis o que quero!

- Bradou cruento, amiudando os golpes

Terríveis e certeiros sobre o peito

Do mancebo infeliz; - Eis o que quero!

Repetiu arrastando-o sobre um fosso imundo,

Cheio de lama e apodrecidas plantas:

- Eis teu leito de bodas, boa noite!

V

A orquestra prosseguia, ardente, forte,

Seus ruidosos acordes; dos dançantes

Poucos se achavam do salão no meio,

A maior parte conversava aos cantos

Cansada sonolenta. De repente

Uma escrava lançou-se alucinada

Entre os grupos esparsos dos convivas!...

- Venham! bradava, meu senhor ´stá morto,

Meu senhor já morreu!... venham, acudam!

Um raio que tombasse no edifício

Não produziria tanto horror

um calefrio

Correu nas veias todas, e nos rostos

A palidez do túmulo estendeu-se.

Levantaram-se trêmulos, medrosos,

Acompanhando a escrava, que apressada

Ao quarto de Lotário os conduziu.

VI

Ele estava deitado no assoalho

Inundado de sangue; um surdo ronco

Partia-lhe do seio, e os olhos baços

Uma janela aberta contemplavam,

Como querendo descobrir nas trevas

Um profundo mistério. O quarto cheio,

Repleto de convivas e de escravos,

Retumbou de questões: - onde foi ele?

Como foi? conheceram-no? seu nome?

VII

Lotário apenas, já levado ao leito,

Para a janela olhava, abria os lábios,

Uma palavra ia partir, depois

Vendo baldados os esforços todos,

Soltava um som pungente e cavernoso,

Entre espuma sangrenta, da garganta.

VIII

Duas horas de angústias se passaram.

A morte caminhava passo a passo,

E não tardava a vir sentar-se, lívida,

Do leito do senhor à cabeceira.

IX

Tudo era em vão; cuidados e socorros

Gastaram-se debalde. Um dos cativos,

Montado sobre rápido cavalo,

Correra a ver o médico; era longe

A morada do filho da ciência;

E a sina de Lotário estava escrita!

X

Quando a sombra funérea de além mundo

Começou a turbar-lhe o olhar e o rosto,

Supremo esforço ele tentou; ergueu-se

Por uma estranha força, abriu os lábios

E murmurou com voz lúgubre e funda,

Com essa voz tão próxima dos túmulos,

Que parece partir de negro abismo:

- Também era meu filho!... e extenuado

Caiu sobre os lençóis, rígido, frio,

Já domínio da campa

 Em vão tentaram

O sentido buscar dessas palavras

Que Lotário dissera ao pé da morte,

Em vão tentaram descobrir aquele

Que era também seu filho! densas trevas,

Impenetrável manto de mistério

Cobria esse segredo, e o único lume

Que pudera surgir, o gelo frio

Tinha apagado para sempre! A campa,

Discreta confidente, esconde tudo!


Publicado no livro Vozes da América: poesias (1864). Poema composto de 4 partes: A Sentença, O Suplício, A Vingança e Visão. 


In: GRANDES poetas românticos do Brasil. Pref. e notas biogr. Antônio Soares Amora. Introd. Frederico José da Silva Ramos. São Paulo: LEP, 1959. v.2, p.101-102



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